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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

O senhor Doubler e a arte de cultivar batatas

Título original: Mr. Doubler Begins Again

© Seni Glaister 2019

© 2019, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Publicado originalmente pela HarperCollins Publishers Limited, UK.

Tradutor: Ana Filipa Velosa

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização da HarperCollins Publishers Limited, UK.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

Desenho da capa: Jelena Opaca - Bürosüd

Imagem da capa: Plainpicture

1ª edição: Maio 2019

 

ISBN: 978-84-9139-406-8

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Créditos

Dedicatória

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Capítulo 34

Capítulo 35

Capítulo 36

Capítulo 37

Capítulo 38

Capítulo 39

Agradecimentos

 

 

 

 

 

 

Para Penelope Glaister, a minha inspiradora e indispensável mãe.

E em memória de

 

Mary Ann Brailsford (1791-1852)

Maria Ann Smith (1800-1870)

John Clarke (1889-1980)

 

E para todos os outros heróis esquecidos de pomares e hortas.

Capítulo 1

 

 

 

 

 

Doubler era o segundo maior produtor de batatas do condado. Sendo certo que o seu rival plantava mais batatas do que ele (por uma margem significativa), Doubler mantinha-se impassível. A motivação pessoal de Doubler não era a quantidade, mas sim a qualidade, e o mero facto de o seu adversário ter mais terra do que ele tinha muito pouco a ver com as suas respetivas competências no que dizia respeito ao cultivo de batatas.

Ao contrário do rival, Doubler era um especialista. Entendia as batatas de uma maneira à qual as batatas raramente aspiraram a ser entendidas. Esperava entender as batatas pelo menos tão bem como aquele outro grande do batatal, John Clarke. O senhor Clarke, o famoso produtor e criador de batatas, era uma inspiração para Doubler que recorria com frequência aos seus conselhos, colocando-lhe questões em voz alta enquanto percorria as suas terras, e encontrando as respostas em forma de sussurros diários quando trabalhava nas suas anotações e apontava os achados do dia. Embora nunca se tivessem conhecido pessoalmente, e Clarke tivesse morrido há algumas décadas, o diálogo entre ambos pressupunha um imenso consolo para Doubler.

Recentemente, as experiências de Doubler andavam a correr extremamente bem e, convicto de estar perto de garantir o seu lugar na história do cultivo de batatas, sentia no seu íntimo (às vezes no coração, outras vezes no estômago) uma pequena e esperançosa semente de emoção. Doubler não era um homem otimista por natureza, e saber que em breve poderia ocupar o seu lugar entre os produtores de batata mais influentes de todos os tempos emocionava Doubler e mergulhava-o num estado de excitação nervosa, não destituído de impaciência e de inquietação.

Porque, para Doubler, o seu legado era tudo.

Mas o legado de Doubler tinha atraído uma atenção indesejada. A ameaça mais recente tinha batido à porta de sua casa nessa mesma manhã. Tinha chegado num envelope amarelo com o seu nome impresso num autocolante branco, algo que sugeria um caráter profissional sinistro por parte do remetente. Também não augurava nada de bom que a ameaça tivesse sido precedida por outros dois envelopes recebidos anteriormente. As três cartas eram de Peele, o primeiro produtor de batatas do condado e as três juntas, essa coleção de três envelopes votada ao esquecimento na escuridão da gaveta do aparador, tinha passado de simples correspondência a uma campanha em grande escala. Enquanto inspecionava as suas terras, Doubler matutava, nervoso, sobre a situação e também sobre como podia afetar o seu iminente sucesso.

Um vento brutal tinha concentrado o ar gelado de todos os vales adjacentes e tinha-o depositado sem piedade sobre a Mirth Farm, permitindo que a temperatura fosse agradável em todo o lado exceto no lar de Doubler, situado numa colina. Mas, apesar disso, Doubler não se apressou. Dirigindo-se para a casa da quinta, contornou o pátio, deteve-se para comprovar o ângulo da nova câmara de segurança e também para conferir os cadeados de cada um dos celeiros. Mesmo nos seus dias mais felizes, quando a mulher ainda estava com ele, tinha sido um homem cauto com predisposição nervosa, mas agora, decorrente das ameaças recentes, as suas inspeções diárias de Mirth Farm tinham atingido uma nova proporção de intensidade e tinham acrescentado à sua rotina uma infinidade de verificações adicionais que tinha interiorizado rapidamente, como se as tivesse seguido durante tanto tempo como tinha seguido as estações.

Apesar do seu nervosismo, as medidas que tinha tomado recentemente para proteger Mirth Farm do adversário fortaleciam-no, de modo que, após pendurar o casaco e o chapéu, se concentrou de imediato no pacote que tinha chegado no correio do dia anterior na esperança de que o conteúdo contribuísse para reforçar as suas defesas. Tal como esperava, o pacote continha uns binóculos novos que examinou com olho crítico. Tirou a tampa das lentes e voltou a colocá-la no lugar, repetindo a ação várias vezes, satisfeito com a forma como encaixavam. Sentou-se firmemente à janela, tentando reduzir a frequência da sua respiração durante uns instantes, antes de levar o seu novo obséquio aos olhos.

Brincou devagar com o foco, movendo a objetiva para a esquerda e para a direita com movimentos pequenos e ágeis, cada vez mais amplos, até focar um tentilhão no alimentador de aves pendurado de um ramo retorcido da macieira mais próxima com uma clareza brilhante e nítida. Doubler deteve-se um instante para se felicitar por ter identificado o pássaro.

— Um tentilhão! — exclamou, pasmado.

Até há apenas uma semana, teria sido só mais um passarinho a esvoaçar por ali antes de debicar os frutos dos seus arbustos. O conhecimento recém-adquirido e a identificação inequívoca provocavam-lhe uma sensação de prazer que não era capaz de decifrar, mas que o levou a observar o tentilhão durante mais uns instantes. Focou os olhos brilhantes do pássaro. Doubler estava impressionado. Os binóculos eram muito superiores ao seu último par e, sem dúvida, contribuiriam para que o seu trabalho fosse mais seguro. Inteiramente satisfeito, dirigiu a vista para a direita e focou-a num objeto bem mais distante: o portão de acesso a Mirth Farm no sopé da colina.

Doubler recordou o tato do portão quando levantou o ferrolho e o abriu de par em par. Houve um tempo em que abria e fechava o portão com regularidade, sem quaisquer preocupações. Ele próprio tinha instalado o portão que sempre se abrira com facilidade, sem protestar nem opor resistência. Mas para Doubler tinham-se acabado as idas e vindas: agora era um homem de Mirth Farm no sentido estrito.

Não acontecera gradualmente, não se tornara cada vez mais solitário aos poucos. Na verdade, no momento em que os seus filhos saíram de casa, tinha decidido que não voltaria a abandonar Mirth Farm. Se nunca dali saísse, desaparecia a possibilidade de não voltar.

Doubler voltou à realidade quando viu um carro chegar pelo caminho. Era só a senhora Millwood, e ele estava à espera da sua chegada, mas sentia os músculos tensos e pele da galinha na nuca. O peso considerável dos binóculos mitigava a sua ansiedade e sentiu-se reconfortado enquanto seguia com eles o veículo que se aproximava. Observou cada movimento até a visitante sair do carrinho vermelho, abrir o portão de madeira, avançar com a viatura e voltar a sair para fechar o portão.

Mal o veículo entrou na sua propriedade, conseguiu ler a matrícula e tomou nota da mesma na borda do jornal, com a intenção de a transferir depois para o livro de registo que tinha pensado encomendar para este propósito concreto. O carro avançava a bom ritmo colina acima, desaparecendo da vista durante vários segundos para depois reaparecer a cada curva. A subida até Mirth Farm era longa e lenta e Doubler observou que a qualidade do veículo provavelmente tinha pouco que ver com a velocidade a que se aproximava… É que quanto mais rápido o carro, mais devagar o avanço, já que os condutores de carros velozes tendem a ficar nervosos por causa dos pneus, dos buracos e das arestas reluzentes das pedras que ameaçavam as jantes a cada curva. Doubler prometeu a si próprio que começaria a cronometrar o tempo que cada carro demorava no trajeto para conferir a sua teoria. A verdade é que não gostava de deixar nada ao acaso.

Capítulo 2

 

 

 

 

 

Nove minutos mais tarde, a senhora Millwood entrou sem se fazer anunciar pela porta da cozinha. Os sons que acompanhavam a sua chegada nunca variavam e Doubler ouviu com atenção enquanto ela pendurava as chaves, tirava o casaco, pousava a mala e trocava o calçado de rua por outro de andar por casa. Resmungou ostensivamente entredentes enquanto contemplava o caixote da compostagem que transbordava de cascas de batata que tinham inundado a antiga tábua de talhante. A reprimenda foi crescendo enquanto procurava Doubler, que se tinha posto em sentido.

— Senhor Doubler! Esta cozinha está outra vez uma pocilga.

Doubler observou-a esvoaçar à sua volta, a afofar, endireitar e arrumar as pilhas de desperdícios. Se a senhora Millwood fosse um pássaro, seria uma carriça, pensou ele com alegria, enquanto observava o seu corrupio de movimentos pequenos.

— Parece uma pocilga, eu sei. Desculpe.

— É uma pocilga porque o senhor a deixa assim. Não é preciso pedir desculpa, era melhor evitar o desastre. — Estava a arrastar uma cadeira de madeira para o extremo da divisão e, num instante, subiu a ela para arrumar uma pilha de livros não lidos que se tinham amontoado misteriosamente nos seus braços. Doubler pensou que parecia que colocava os livros ao acaso mas, quando inspecionava as estantes depois de ela se ter ido embora, pareciam sempre ordenados de certa maneira. Antes de poder estudar a sua metodologia, ela já estava no chão, com um espanador na mão que até há pouco segurava os livros.

— Estou a ver que tem andado outra vez de roda das suas batatas — disse ela, dececionada.

— As minhas batatas. Sim. Eu… — De repente, Doubler quis partilhar as suas preocupações de imediato em vez de esperar até à hora de almoço. Tinha demasiadas prioridades opostas na cabeça e precisava do pragmatismo da senhora Millwood para as estruturar de alguma forma. Levantou-se como se quisesse atacar de imediato o assunto, mas o sangue subiu-lhe à cabeça e os pensamentos acumularam-se num remoinho de apoquentação enquanto titubeava à procura das palavras que ameaçavam interromper uma década e meia de rotina caso desatassem a conversar antes de ela terminar os seus afazeres domésticos. Quando recuperou o fio à meada (fio esse que, caso fosse puxado, acabaria por revelar a sua alma), ela já tinha desaparecido, deixando um rasto de pó atrás de si.

Enquanto se esforçava para recuperar a compostura, ouviu-a arrastar o aspirador no andar de cima e soube que a tinha perdido durante as próximas duas horas.

Doubler passeou-se pela cozinha, visivelmente dececionado e solitário a julgar pelos ombros caídos. Sentia as grossas lajes de pedra insolitamente frias debaixo das peúgas, mas foram aquecendo à medida que se aproximava do fogão a lenha onde se deteve para se aquecer. À sua esquerda, sobre um bloco largo de madeira gasto e liso pelos cortes e esfregas de um talhante que há muito tinha ido desta para melhor, havia três grandes panelas de estanho martelado que teriam sido usadas por cozinheiras vitorianas para fazer chutney e compota em grandes quantidades. Cada panela estava tapada por uma peça de musselina quadrada e ele dispôs-se a retirá-las para examinar o conteúdo. Com a ajuda de uma colher de pau, remexeu a primeira camada de batatas, examinou-as com olho crítico e depois foi buscar a prancheta correspondente. Cada uma delas segurava um grosso molho de folhas que exibiam a caligrafia imaculada de Doubler. Com mão firme, tinha anotado a lápis datas, medidas, algarismos e fórmulas; esboços e diagramas enchiam as páginas e estas, sem necessidade de mais interpretação, revelavam logo que o estudo tinha algo de maravilhoso. Mas, sob o olhar experiente de um especialista no cultivo da batata, as páginas revelavam a ambição de uma vida inteira: a investigação era revolucionária. O trabalho, acompanhado de notas de rodapé e apêndices, ilustrava as esperanças e os sonhos de um homem decidido a deixar o seu legado, embora consciente de que o tempo não jogava a seu favor.

Com um garfo de aço, Doubler espetou diversas batatas de cada lote. Extraiu várias da panela que menos lhe agradava e cozeu-as rapidamente em água e sal. Reservou-as para o seu almoço.

Satisfeito com os preparativos, dispôs-se a escrever sobre os achados matutinos. Para isso, sentou-se na enorme mesa de madeira, originalmente de pinho claro sem envernizar, embora agora exibisse tantas marcas de água, tantas queimaduras de panelas a ferver, tendo sido encerada tantas vezes que adquirira o tom e os veios de uma madeira nobre. Espalhou os seus papéis, consultando com frequência as páginas anteriores. Os seus achados condiziam com as conclusões prévias e era evidente que a sua investigação era irrefutável, mas dava-lhe uma sensação de calma acrescentar mais datas, mais informações, mais provas, enquanto os dias se tornavam mais compridos e o solo se descongelava, e o aumento subtil da temperatura preparava a terra para uma nova geração que validasse os mesmos.

Doubler trabalhou sem parar durante uma hora: tirou apontamentos, retificou, conferiu o seu trabalho e sublinhou (outra vez) as conclusões. Sem ser interrompido pela senhora Millwood, dispôs-se a fazer a segunda ronda pelas suas terras, uma rotina que levava a cabo quatro vezes por dia, sem falta. Vestiu uma camisola grossa e sentiu-se reconfortado pela calidez da lã áspera, depois correu o fecho de um casaco encerado antes de baixar as orelheiras do gorro para impedir a passagem do vento ao afastar-se da proteção da casa da quinta.

O ar estava em sossego, como suspenso, algo exclusivamente próprio do mês de fevereiro, que ele adorava. O campo estava recém-arado e a terra, cor de chocolate, brilhava ao sol pálido do inverno, enquanto a água de chuva acumulada nos sulcos resplandecentes compunha uma bela paisagem às riscas até onde a vista alcançava. Pássaros novos cruzavam os campos em grandes bandos acastanhados, maiores do que as andorinhas que era capaz de distinguir com facilidade, mas que ao seu olhar inexperiente ainda eram impossíveis de identificar. Jurou que traria os binóculos da próxima vez que repetisse o circuito. Embora não os tivesse comprado para o avistamento de pássaros, de repente sentia a necessidade de saber quem eram os recém-chegados, convencido de que uma semana antes não estavam ali.

Caminhava devagar, contornando as estremas do terreno, seguindo as sebes tortas, espessas e impenetráveis apesar da falta de folhas novas. Dirigiu-se a um dos dois pontos mais altos da propriedade, um outeiro do qual se avistava toda a zona norte. Dali, podia percorrer com a vista cada lote de terreno e compará-lo com o seu registo mental. Nessa época do ano pouco havia a destacar, porém, um mês mais tarde, quando o risco das geadas mais fortes tivesse passado, estudaria o terreno minuciosamente para escolher o momento ideal para plantar as suas batatas. O inverno proporcionava-lhe o tempo necessário para preparar a terra e manter a maquinaria porque, de momento, bastava supervisioná-la, reconhecê-la e honrar a terra, pois isso contribuía para assentar os alicerces dos cuidados que lhe dispensaria nos próximos meses.

Após percorrer o perímetro completo do terreno de maior tamanho, subiu a colina, encaixando os seus passos nos altibaixos de um sulco, medindo mentalmente a extensão do terreno só pelo mero facto de tal atividade lhe proporcionar um grande consolo. Ao longo das estações, a terra aumentava e minguava em altura e potencial, à medida que os cultivos se expandiam e murchavam; para que a colheita fosse um sucesso ou um falhanço dependia da alquimia de misturar ciência, competência e magia, mas a natureza, que tinha sempre a última palavra, impunha-se com omnipotência. Embora a força das plantas dependesse de muitos fatores, o perímetro do terreno nunca mudava. Tendo em conta que o seu passo era sempre firme, a conta devia sair sempre igual, e assim fora desde que comprara a quinta, há quase quarenta anos.

Quando dobrou a esquina para entrar no pátio, mais uma vez com a casa em frente, voltou a comprovar a fechadura das portas dos celeiros. Havia várias garagens e outros alpendres espalhados pela quinta, mas esses três eram os que mais prazer e mais stresse lhe causavam. Afinal de contas, eram as edificações que continham o seu legado.

Cada um dos edifícios estava hermeticamente fechado com umas correntes pesadas colocadas entre a grade de aço. Levantou a vista para comprovar o ângulo da câmara e cumprimentou-se com um gesto um tanto preocupado, que depois veria no monitor. Doubler tinha albergado a esperança de que a câmara lhe desse segurança, mas também tinha descoberto que lhe fazia companhia, e sentia um estranho prazer ao observar-se quando examinava as gravações à noite.

Doubler só voltaria a inspecionar os dois celeiros maiores ao anoitecer. Gostava que tudo o que continham estivesse às escuras, por isso nunca abria as portas durante o dia. Mas ao passar percebia o formigueiro da vida florescente, e era quase capaz de ouvir o crescimento a brotar da pele da colheita do ano anterior. O avanço poderia ser ínfimo nessa época do ano, mas multiplicado pelos milhares de batatas alinhadas em estantes de madeira, quase conseguia imaginar o efeito de toda essa energia concentrada nas imediações. Ou, pelo menos, era o que Doubler gostava de pensar.

O terceiro celeiro, embora inativo nessa época do ano, era o mais valioso para Doubler. Se pudesse embrulhá-lo com correntes gigantes como um enorme presente, fá-lo-ia. Em vez disso, contentava-se com as medidas de segurança que tinha instalado.

Espreitou em volta para comprovar que ninguém o estava a ver enquanto introduzia o código num painel junto da porta para aceder ao armazém secreto. Esgueirou-se para o seu interior e fechou a porta atrás de si. Depois de inspirar fundo, demorou um minuto a usufruir do aroma único que flutuava no ambiente tanto tempo depois de o tubérculo ter sido utilizado. Sim, um nariz treinado distinguiria o cheiro a batata, mas também um cheiro forte a limpo que cobria os restos de seiva e de mel. O armazém só voltaria à vida várias semanas depois e ele adorava vê-lo tão vazio e promissor no inverno. Inspirou várias vezes para saboreá-lo antes de acender uma luz pouco potente e inspecionar os grandes alambiques de cobre com os seus fantásticos canos, funis e manómetros. Apesar da iluminação escassa, o metal resplandecia.

— Bom dia — sussurrou, com um laivo de respeito na voz. Para um leigo na matéria, aquela geringonça devia parecer bastante misteriosa, surpreendente até. Mas, para Doubler, cada peça estava carregada de sentido.

O aparelho já ali estava quando Doubler comprou a quinta com a sua mulher, Marie. Tinha-o descoberto algumas semanas depois de se mudar, quando começou a avaliar os montes de maquinaria ferrugenta que o outro agricultor ali tinha deixado (o homem tinha morrido de repente, quinze anos antes do esperado, mas, mesmo que tivesse recebido algum tipo de aviso, Doubler duvidava que tivesse arrumado aquele cantinho onde se amontoava uma série de más decisões).

Quando Doubler descobriu uma grande pilha de peças metálicas atrás de um trator, enfardadeiras e sacos de ração podres, reconheceu o tom esverdeado do óxido de cobre e soube que teria algum valor se encontrasse o ferro-velho adequado. Mas então, quando começou a separar meticulosamente o trigo do joio, viu que era um velho alambique daqueles que se usam para destilar vodca, e para se distrair das agonias da paternidade e de uma esposa a quem não tinha parado de desiludir, decidiu investigar a geringonça a fundo. Ao princípio tinha feito uns remendos desajeitados, colocando uma peça aqui e uma peça acolá, perguntando-se vagamente se alguma vez acabaria de repará-lo bem, quando, num arranque de inspiração que não soube de onde tinha saído, se sentiu obrigado a desmontar todo o dispositivo, colocando as peças no chão antes de limpar e reparar cada uma delas, substituindo juntas e válvulas, e depois montando a estrutura completa, participando no processo com a destreza de um mecânico e a paciência de um fabricante de órgãos.

Agora, conhecia a maquinaria de cor, conhecia os seus rangidos e as suas mudanças de humor, e sabia como sintonizá-la na perfeição, tratando-a com o respeito que uma peça de engenharia tão antiga merecia. Doubler era plenamente consciente de que as técnicas modernas tinham ultrapassado francamente o seu traste velho, mas o resultado continha imperfeições idiossincráticas próprias da sua natureza, que faziam com que o produto final artesanal fosse tão único e desejável: várias garrafas do dito cujo descansavam nesse momento na sua cave.

Terminada a sua inspeção, Doubler apagou a luz e fechou a porta, depois de puxar duas vezes o puxador para se assegurar de que estava bem fechada. Enquanto regressava ao pátio, olhou para o sol, que agora se aproximava do canto da parede da cozinha, e apressou-se a entrar, consciente de que tinha passado satisfatoriamente o tempo até à hora de almoço quando, por fim, poderia partilhar as suas preocupações com a senhora Millwood.

Capítulo 3

 

 

 

 

 

Enquanto a senhora Millwood corrupiava pela cozinha a preparar o bule para os dois e a pôr a mesa já impecável da cozinha, Doubler preparou o seu almoço. Da escuridão da despensa tirou duas chalotas depois de comprovar a sua dureza com o polegar e o indicador, após tantos meses.

— Supera a prima cebola — declarou à senhora Millwood, que o observou cortar os bolbos em cubinhos com um olhar de desconfiança que ele percebeu enquanto trabalhava. — Olhe para isto! Que delícia! — Os bolbos resplandeciam com uma brancura iridescente e notava os pedaços estaladiços debaixo da lâmina. Pô-los numa frigideira e amoleceu-os uns segundos em manteiga antes de acrescentar as batatas e esmagá-las habilmente com os dentes de um garfo. — Não é preciso fazer puré, sabe, só esmagar — respondeu alegremente a uma pergunta que não lhe tinham feito.

Depois de as condimentar com pimenta com dois gestos de pulso, levou o prato fumegante para a mesa.

A senhora Millwood estava a abrir o seu tupperware e a tirar as sandes imensamente variadas que fazia todos os dias.

— O que lhe calhava mesmo bem aí, senhor Doubler — disse, apontando para o prato com um gesto da cabeça —, era um bom bocado de queijo cheddar fundido.

Cheddar? Fundido? Meu Deus, não, senhora Millwood. Porque é que haveria de fazer tal coisa?

— Para dar um pouco de sabor, ora essa. Ou vitaminas. Não se pode viver só de batatas.

Sabia que era uma frase provocadora, mas não pretendia irritá-lo, o comentário era fruto de uma preocupação genuína e habitual com a sua alimentação.

— Ai, senhora Millwood. Não é preciso pô-la a par dos benefícios da batata britânica, pois não? Sabe tão bem como eu que a batata produz mais proteínas comestíveis por hectare e dia do que o arroz ou o trigo.

— Mas não penso comer um hectare de batatas, senhor Doubler. Só quero que o meu almoço seja saboroso. Saboroso e saudável.

— Não me venha com o saudável! O valor biológico da proteína da batata é superior ao do trigo, do milho, das ervilhas ou do feijão. As batatas são tão boas para si como o leite, e ninguém nega que o leite é benéfico para a saúde, pois não?

— Conheço perfeitamente as qualidades da batata britânica. — E assim era. Na noite anterior tinha ilustrado sobre esse assunto as senhoras do seu grupo de tricô, que tinham mostrado o seu assombro perante as informações e o nível de conhecimentos da senhora Millwood, para além do tom persuasivo e passional da sua defesa. — Mas um pouco de cheddar fundido para dar sabor calhava que nem ginjas.

Doubler pousou o garfo e olhou com seriedade para a sua colega de almoço.

— Senhora Millwood. O calor é o pior que pode acontecer a um queijo cheddar. Tudo o que ia conseguir era extrair a gordura e destruir o sabor. Se alguém se der ao trabalho de fazer um cheddar decente, só há uma maneira de comê-lo.

Nesse momento, foi à despensa e pegou num pacote grande embrulhado em papel vegetal e atado com um cordel.

— Permita-me que lho mostre — declarou com movimentos exagerados, sem desviar a vista do seu público. — O cheddar serve-se numa tábua de madeira. Nada de cerâmica nem porcelana. É uma regra — disse com firmeza, colocando o cheddar embrulhado no centro de uma tábua de cortar de madeira. — Os azeites e sabores da madeira são absorvidos pelo queijo e dão-lhe uma característica que não se pode replicar por outros meios. Segundo, a madeira é porosa. Não cria uma barreira impenetrável face ao queijo, de maneira que lhe permite respirar.

A senhora Millwood parecia conter a respiração.

— Deixar o queijo respirar é outra regra. Caso contrário, sua e isso não é bom. Um cheddar suado é do piorio — disse Doubler, abrindo o pacote com cuidado.

A senhora Millwood abanou a cabeça com solenidade.

— A regra seguinte. — Contou até ao dedo indicador e percebeu que na verdade havia muitas regras referentes ao cheddar e que provavelmente precisaria de as anotar. — Só um corte, senhora Millwood, ou, em todo o caso, quantos menos cortes melhor. — Utilizou uma navalha para fazer uma incisão diagonal na parte mais estreita até que o conseguiu partir com os dedos. — O cheddar é um queijo para os dedos: uma autêntica experiência sensorial. Respira-se, toca-se e saboreia-se. O tato é a parte que não podemos perder. Ao tocar com os dedos, preparamos o cérebro para o que vem a seguir. Não é nenhuma surpresa. O meu cérebro já se está a preparar para o intenso sabor do cheddar porque os meus dedos o provaram antes do que a boca. Está a ver?

A senhora Millwood observava-o atentamente, enquanto segurava distraidamente a sandes, com a testa franzida.

— Então, faz-se um corte com a faca e parte-se com os dedos para viver a experiência completa. Pode-se comer com uma maçã; provavelmente uma reineta Cox’s Orange seja a ideal, mas não sou um pedante, senhora Millwood. E chutney. Há que procurar um chutney doce ou então alguma coisa suficientemente seca e amarga. Dar-lhe-ia umas recomendações, mas o chutney é muito pessoal, é uma questão de gosto. Qualquer coisa menos pickles: a salmoura competiria com um bom cheddar em vez de o complementar. Ninguém quer que haja competição no seu prato. O que se procura é a harmonia. Harmonia e tom. Pense nisto como se fosse uma composição musical e a senhora fosse a maestrina.

A senhora Millwood ficou a olhar para a sua sandes e provou-a com cautela.

— Calor? Não. Não aplicaria calor a um bom cheddar nem mesmo que fizesse frio. É um desperdício total.

— Lamento ter falado. — A senhora Millwood deu uma dentada desafiante à sua sandes, recusando-se a sentir vergonha do seu queijo cortado à faca em fatias finas, com presunto de supermercado, mostarda, pickles, pimento e alface. — Delicioso — disse, dando uma dentada ainda maior. — Pensei que assim alegraria o seu almoço — acrescentou ela, empurrando a sandes com um gole generoso de chá.

— Bom, sim. Não sou contra acrescentar um pouco de queijo às batatas, mas não neste contexto, e nunca cheddar. Há muitíssimos queijos desejosos de serem fundidos. Incluiria quase toda a família dos queijos de cabra nessa categoria — disse, descartando toda a variedade com um gesto de mão. — Mas não me interessa acrescentar sabor. Estou a trabalhar, senhora Millwood, e o que quero experimentar é a batata.

— Está satisfeito com as batatas de hoje?

— Oh, sim, sim! Estou contentíssimo. Portaram-se magnificamente. Há poucas novidades, e isso é bom. Os dados confirmam-se — Doubler baixou a voz, para acrescentar em tom conspirador: — Assim que os especialistas, os nossos amigos estrangeiros, confirmarem o meu achado, acabou-se.

A senhora Millwood olhou-o com atenção.

— A sua investigação? As suas batatas? O que é que se acabou? — A voz da senhora Millwood revelava preocupação. Da última vez que se tinha acabado, isso quase terminou com a sua vida.

Doubler reconheceu a preocupação e dispôs-se a assegurar que a sua motivação, a sua vontade de viver e a sua fome de investigação não se tinham acabado.

— Acho que nunca me vou desvincular totalmente das batatas. Levo-as no sangue. Com que me ia ocupar se as batatas não preenchessem cada instante da minha vida de trabalho? Mas com a análise detalhada sim, acho que vou acabar com isso. Não vejo que haja margem de melhoria nem perguntas sem resposta. Assim que receber a validação, pressuporá o fim de um período muito longo de trabalho de elevada concentração. Se tiver razão e a minha investigação for formalmente reconhecida, então vou ter de arranjar outro projeto, ou dedicar os anos que me restam a tentar que o meu trabalho se conserve devidamente para que as futuras gerações possam usufruir dele. Será o momento mais significativo da minha vida, disso não há dúvida. Evidentemente, ainda estou à espera do parecer oficial do instituto e, como pode comprovar, a espera não está a ser nada fácil. — Suspirou pesadamente, minando toda a confiança com a qual acabava de se expressar.

A senhora Millwood sabia tão bem como ele que Doubler não lidava bem com a espera. Ela também aguardava pelas notícias com impaciência. Afinal, desde que ele lhe tinha revelado a sua descoberta, ela tinha contribuído substancialmente para que tomasse a iniciativa que esperavam que tivesse como resultado a confirmação científica que ele tanto ansiava. Ela tinha pesquisado a fundo as opções existentes, sem trair nenhuma das suas confidências, tinha pedido conselhos em matéria legal, em temas de copyright, patentes e assessoria científica, e, em muitos aspetos, as consultas tinham sido tão meticulosas e esmeradas como os esforços do próprio Doubler.

A situação, tal como lhe tinha explicado durante um almoço, era que, durante as décadas que ele tinha passado a cultivar batatas, a agricultura tinha avançado e ele tinha ficado para trás. Pelos vistos, a ciência das batatas era coisa sobretudo dos grandes produtores, aqueles que podiam beneficiar-se mais a nível comercial se melhorassem significativamente o processo. Os grandes produtores de batatas pré-fritas para forno estavam à cabeça da investigação e desenvolvimento do produto, e as cadeias de comida rápida também tinham um interesse considerável nas pragas.

— Quem é que ia pensar que as batatas de forno tinham tanto poder, senhor Doubler! — tinha exclamado, antes de continuar com as suas lúgubres constatações.

Apesar da sua produção significativa, Doubler não tinha feito acordos com esses sócios comerciais e nunca tinha colaborado com eles. Do mesmo modo, através da feliz descoberta depois da limpeza meticulosa do celeiro, Doubler meteu-se discretamente no negócio do vodca, mas nunca em grande escala. Assim, embora fosse um colaborador muito apreciado e respeitado, a indústria do vodca regia-se pelos seus próprios regulamentos e a legislação específica era um desafio. Doubler não era suficientemente importante nem para aqueles que financiavam a investigação nem para os grupos de pressão que beneficiavam os que cultivavam batatas, e naturalmente era insignificante para as companhias de bebidas. Doubler não se movia nos círculos adequados.

A senhora Millwood tinha investigado meticulosamente e descobriu com assombro as duplicidades da vida corporativa. Tinha investido muito tempo a falar com pesos pesados da advocacia e todos a tinham advertido para não se precipitar na partilha dos achados do seu amigo anónimo até encontrar um sócio com muito dinheiro que lhes oferecesse garantias científicas. Devia ter cuidado e saber onde pisava, já que algum peão sem escrúpulos na cadeia de fornecimento podia apropriar-se da sua investigação, ou menosprezar os seus achados, sem pensar duas vezes. Tal como um desses juristas tinha declarado:

— Se descobrirem o que anda a tramar na sua quinta, os grandalhões vão devorá-lo sem misericórdia e cuspir os restos. — Por esse motivo, um dia durante o almoço expôs a Doubler uma solução mais morosa, mas que apresentaria o seu trabalho perante os olhos de alguns dos peritos mais respeitados e qualificados.

E, assim, após muito investigar, a solução da senhora Millwood passava pela obtenção de uma validação imparcial do Instituto de I + D da Batata do Norte da Índia. Aguardavam agora a resposta dessa venerada instituição.

— Bem, vamos dar uma vista de olhos. — A senhora Millwood vasculhou a sua mala à procura de um pequeno diário de couro e folheou as páginas. — Enviámos o pacote logo depois do Natal, não foi? Aqui está; foi no dia vinte e sete. É preciso ter em conta os atrasos habituais com as férias e essas coisas mas, mesmo assim, já passaram seis semanas.

Doubler parecia sombrio.

— Mas seis semanas não é assim tanto tempo se pararmos para pensar. Vai por via terrestre, não por correio aéreo, e não sei como funcionará o serviço postal indiano. Vamos dar-lhes quatro semanas, está bem? E depois vão precisar de mais algum tempo para processar… duas semanas? Não queremos que façam as coisas à pressa. Quatro então? Quatro semanas para fazer um trabalho impecável. E queremos que façam um trabalho impecável, não queremos? E depois mais quatro semanas para o correio de volta. Acho, senhor Doubler, que a sua apoquentação é prematura. Parece-me que, se não tiver sabido nada deles no início de abril, então pode começar a pensar que há algum um problema.

— Que tipo de problema? — No sobrolho franzido de Doubler concentravam-se uma série de temores indefinidos.

— Problemas no correio. Erro administrativo da parte deles. Extraviou-se. Também temos de ter em conta o aspeto técnico. Não pensam que o seu trabalho seja importante. Acham que as suas conclusões são erróneas. Não acham que seja merecedor de uma resposta.

Doubler sentiu-se alarmado por cada uma das possibilidades, mas a soma de todas (porque é que ia falhar num aspeto se podia falhar em todos?) fazia com que a sua cabeça andasse à roda.

A senhora Millwood sorriu-lhe para reconfortá-lo.

— Mas sabe como é inútil preocupar-se com estas coisas, não sabe? Não podemos preocupar-nos com as coisas que fogem ao nosso controlo. Tem a sua quinta. Tem as suas batatas. Tem feito descobertas, senhor Doubler. E vão-lhas reconhecer.

Ao ver que as suas palavras não causavam grande impacto, a senhora Millwood recorreu à arma mais poderosa do seu arsenal.

— Acha que o senhor Clarke se veio abaixo ao primeiro obstáculo?

Doubler meditou na questão. Imaginou o seu grande herói a trabalhar à luz de uma vela, a anotar os próprios achados com um lápis minúsculo. Pensou em todas as gerações de batatas que devia ter cultivado sem nenhum propósito, só pelo desejo fervoroso de melhorar a espécie para benefício de todos. Pensou no lucro que isso terá representado para um homem sem formação alguma. Doubler envergonhou-se.

— Não, claro que não. O senhor Clarke superou todos os obstáculos.

A senhora Millwood sorriu para com os seus botões.

— Foi, não foi? E olhe para si, envergonhado e de cabeça baixa, e ainda não sofreu nenhum revés.

— Tem razão, como sempre. E o pobre senhor Clarke não contava com nenhum modelo que seguir, ao contrário de mim. Mas, senhora Millwood, entende a minha preocupação, não entende? Esta é a obra da minha vida. Eu também tenho feito sacrifícios durante este tempo e quero que esse esforço signifique alguma coisa, que exista um propósito. Quero o meu legado.

Levantou-se e dirigiu-se à janela, limpou o vidro embaciado para ver como os últimos raios de sol do inverno atravessavam os campos.

— Quando eu morrer, senhora Millwood, este trabalho será tudo o que vai restar de mim. As minhas batatas são o meu legado. Dediquei-lhes cada minuto da minha vida e os meus dias mais úteis já ficaram para trás. Quero deixar uma marca. Quero demonstrar ao mundo que valeu a pena. Quero morrer e saber que fiz a diferença. É pedir demasiado? Estou a ser muito ambicioso?

A senhora Millwood pensou com calma antes de responder.

— Não é ambicioso, mas talvez um pouco impaciente. Está cheio de saúde, senhor Doubler. E mais: dispõe de muito tempo para fazer a diferença. Devia considerar-se um sortudo — fez uma pausa e Doubler, concentrado na paisagem, não reparou numa sombra temerosa que se assomou aos olhos da senhora Millwood.

Virou-se para ela, olhando-a inquisitivamente, enquanto esperava que continuasse. Ela abanou a cabeça com um gesto triste e um sorriso decidido no rosto, e continuou numa direção ligeiramente diferente.

— Nem todos têm a oportunidade de conseguir algo relevante, senhor Doubler, devia estar orgulhoso de tudo o que já conseguiu. E quem é que lhe diz que a obra da sua vida já está acabada? Só o tempo o dirá. Ter de esperar pela resposta trazida pelo carteiro é insignificante. Há muita gente que sofre consideravelmente mais por menos de um legado, senhor Doubler.

A senhora Millwood atacou a sua Granny Smith com grande entusiasmo e Doubler, mais uma vez grato pela sua enorme sabedoria, e acostumado a que a senhora da limpeza tivesse muito mais instinto do que ele para as coisas da vida, decidiu não dizer nada sobre a variedade de maçã que estava a comer.