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Editado por Harlequin Ibérica.

Uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2011 Susan Wiggs

© 2015 Harlequin Ibérica, uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

A escolha de Daisy, n.º 36 - Dezembro 2015

Título original: Marrying Daisy Bellamy

Publicado originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial.

Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin, HQN e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

® e ™ são marcas registadas por Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença.

As marcas em que aparece ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-7461-9

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S. L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicado

Agradecimentos

Primeira Parte

Um

Dois

Três

Quatro

Cinco

Seis

Sete

Oito

Nove

Dez

Onze

Segunda Parte

Doze

Treze

Catorze

Quinze

Dezasseis

Dezassete

Dezoito

Dezanove

Vinte

Terceira Parte

Vinte e um

Vinte e dois

Vinte e três

Vinte e quatro

Vinte e cinco

Vinte e seis

Vinte e sete

Vinte e oito

Vinte e nove

Trinta

Trinta e um

Trinta e dois

Trinta e três

Trinta e quatro

Epílogo

Se gostou deste livro…

 

 

Este livro é dedicado às minhas leitoras.

Daisy Bellamy, uma adolescente ressentida apareceu há anos no livro À Beira do Passado, com vocação de ser um personagem passageiro. Mas vocês, as minhas leitoras, conservaram a sua lembrança nos vossos corações, livro após livro, pacientemente à espera do momento de conhecer a sua história. Foram a motivação para escrever a história de Daisy. Muito obrigado por me oferecerem a inspiração que permitiu a este personagem empreender a sua própria viagem.

Agradecimentos

 

Quero agradecer, de maneira muito especial, aos verdadeiros Hubble, Andrea e Brian e também a Kay Frichman e à sua família encantadora pelas suas contribuições generosas.

Em alguns livros, os autores precisam, tal como os pilotos de corridas, de uma oficina de mecânicos literários para conseguirem chegar em perfeitas condições até à volta final. A equipa deste livro é formada, embora não se limite a eles, pelos meus colegas e amigos Anjali Banerjee, Kate Breslin, Sheila Roberts e Elsa Waltson. Margaret O’Neill Marbury e Adam Wilson de MIRA Books; Meg Ruley e Annelise Robey da agência Jane Rotrosen.

Primeira Parte

Um

 

O noivo era tão bonito que o coração de Daisy Bellamy quase se derreteu ao vê-lo. «Por favor», suplicou para si, «por favor, que corra tudo bem desta vez.»

Esboçou um sorriso nervoso para o noivo.

– Vamos – encorajou, num sussurro quase inaudível, – repete-o com mais sentimento. Diz «amo-te». Demonstra-me o que sentes.

Era como um príncipe de contos de fadas, com o smoking cinzento, perfeitamente penteado e a exsudar verdadeira adoração por cada poro da sua pele. Olhou para ela nos olhos e declarou:

– Amo-te.

– Sim – sussurrou Daisy, como resposta. – Conseguiste! – afastou a câmara do seu rosto. – Era isso que te pedia. Bom trabalho, Brian!

O operador de câmara virou a câmara para capturar a reação da noiva, uma jovem muito bonita de pele rosada chamada Andrea Hubble. Usando a câmara de vídeo como se fosse um apêndice do seu próprio corpo, Zach Alger assessorou o casal com algumas frases e depressa os pôs a falar intimamente sobre o seu amor, as suas esperanças, os seus sonhos e a felicidade daquele dia glorioso.

Daisy capturou uma foto instantânea do casal enquanto se inclinavam para dar outro beijo. Tinham de fundo o céu sobre o lago Willow e as gotas de água a cintilar como estrelas na luz ténue do crepúsculo. A beleza da paisagem proporcionava um bónus de romantismo às fotografias. Infelizmente, Daisy não podia dizer o mesmo da sua própria vida.

Daisy tinha saudades de sentir a alegria que se refletia no rosto dos seus clientes, mas o seu passado sentimental podia resumir-se como uma sucessão de erros e oportunidades perdidas. E ali estava naquele momento, a tentar endireitar a sua vida. Tinha um filho pequeno que não era consciente de que a mãe era uma mulher que complicara a vida desde muito jovem. Uma mulher com um trabalho estável e o desejo não reconhecido de um amor tão intenso como o que observava através das lentes da máquina fotográfica.

– Penso que já acabámos aqui – anunciou Zach, olhando para o relógio. – E espera-vos uma grande festa.

Os noivos, sorrindo, deram as mãos. Daisy conseguia sentir a sua emoção.

– Será a festa mais importante das nossas vidas – indicou Andrea. – E espero que seja perfeita.

Não seria, pensou Daisy, com a máquina fotográfica pronta. Às vezes, as melhores fotografias surgiam nos momentos mais inesperados. Eram precisamente os imprevistos que transformavam um casamento num momento especial e memorável. Uma das primeiras coisas que descobrira quando começara a trabalhar como fotógrafa de casamentos fora o encanto da imperfeição do momento. Em todas as celebrações, por muito bem que as tivessem planeado, acontecia algo que saía do guião: um padrinho que punha a cabeça no ponche, o colapso da tenda em que se celebrava o casamento, alguém que acabava com o cabelo chamuscado por se aproximar demasiado das velas, uma tia com demasiado peso que desmaiava ou um menino que não parava de chorar.

Eram esses os detalhes que tornavam a vida interessante. Como mãe solteira, Daisy aprendera a apreciar os imprevistos. Alguns dos melhores momentos da sua vida tinham chegado quando menos o esperava, como a mão diminuta do filho a ancorá-la à terra com uma força mais poderosa do que a da gravidade. Também alguns dos momentos mais terríveis, como o de um comboio a abandonar a estação e a deixá-la para trás, levando os seus sonhos. Mas tentava não pensar muito nisso.

Sugeriu aos recém-casados que fossem de mão dada até à pradaria que havia à beira do lago. Durante a Segunda Guerra Mundial, aquele espaço era ocupado por um dos chamados «jardins da vitória». Naquele momento, era um dos lugares favoritos de Daisy, sobretudo, àquela hora, em que o tempo parecia parar na transição do dia para a noite.

Os raios rosados e cor de laranja do último sol da tarde iluminavam a pradaria. Para Andrea e para Brian, aquele era um momento perfeito. A noiva começou o caminho, a andar ligeiramente à frente dele, com o queixo erguido. A postura do noivo era protetora, mas exsudava júbilo. A brisa elevava ligeiramente o vestido da noiva, de maneira que as sombras de ambos ficavam unidas por uma renda delicada. Aquele movimento inesperado coincidiu com um dos disparos da máquina fotográfica.

Ao observar a fotografia pelo visor, Daisy suspeitou que aquela seria uma fotografia emblemática para o casal.

Só que… Ampliou a imagem para ver de perto um ponto que aparecia no horizonte.

– Bolas… – murmurou.

– O que se passa? – perguntou Zach, olhando por cima do seu ombro.

– Jake, o cão dos Fritchman, voltou a fugir.

E ali estava a sua imagem, em alta resolução, recortada contra o céu vasto e a estragar a fotografia.

– Um clássico – indicou Zach.

Recuou para arrumar os cabos e organizar o equipamento para ir ao copo-d’água.

Daisy pressionou um botão para etiquetar a fotografia com o fim de a retocar mais tarde.

– Estás pronto? – perguntou a Zach.

– Está na hora de ir – afirmou ele.

Seguiram o casal pela margem do lago até chegar ao pavilhão principal do acampamento Kioga, que era o lugar onde ia celebrar-se o banquete. Os noivos pararam por um instante para fazer a grande entrada e Daisy preparou-se para documentar o grande acontecimento.

Gostara da noiva desde o princípio e sempre adorara a localização do acampamento Kioga. Aquele centro de férias situado à beira do lago pertencia aos avós de Daisy. Situado no canto mais selvagem do condado de Ulster e perto da cidade de Avalon, o acampamento Kioga fora fundado como um lugar de descanso para a elite nova-iorquina. Era um lugar para onde as pessoas com dinheiro podiam fugir do calor insuportável do verão.

Há pouco tempo, Olivia, a prima de Daisy, transformara o acampamento num estabelecimento de luxo. No ano anterior, aquele lugar de retiro reinventado transformara-se num centro de celebração de casamentos e já tinham reservas para todo o ano.

Para Daisy, o acampamento Kioga representava muito mais do que uma bela paisagem. Lá, passara alguns dos momentos mais felizes da sua vida e também dos mais dolorosos e fora aquela paisagem que educara o seu olhar de fotógrafa. A empresa para a qual trabalhava desde que acabara os estudos, a Wendela’s Wedding Wonder, tinha a sua sede em Avalon e Daisy agradecia por poder contar com aquele trabalho. Era um trabalho estável, com horários peculiares e, embora soubesse que nunca enriqueceria, era bem pago. Nunca faltariam pessoas dispostas a casar-se. E sim, sonhava poder diversificar o seu trabalho e ir para além dos retratos e dos casamentos, porque o seu desejo mais profundo era dedicar-se à fotografia narrativa concentrada na natureza.

No fundo, era uma narradora de histórias. As suas fotografias ofereciam vislumbres de vida. Através das lentes, capturava a natureza efémera do mundo que a rodeava com fotografias capazes de a comover. Tentava despertar emoções com imagens tão simples como a elegância dos ramos das árvores a afundar-se no lago, o bosque verde na primavera ou as formas dramáticas dos penhascos do desfiladeiro. Quando estava na universidade, sentia-se pressionada porque os temas com que gostava de trabalhar não eram compatíveis com as pressas: a transformação dos girinos, um cervo à procura de um caminho na pradaria, a imobilidade de uma garça à espera da sua próxima refeição nos baixios pantanosos.

Daisy encontrara na fotografia a possibilidade de se expressar como artista e a paixão pelo trabalho. Aquele fascínio chegara quando, aos dezoito anos, lhe tinham oferecido uma máquina fotográfica. Fotografara a avó a tentar dançar o hula hoope a desfrutar do momento como se não houvesse nada melhor. Era uma situação que nunca se repetiria, mas que ela conseguira congelar no tempo e na memória. E, embora fosse uma fotografia da avó, havia algo universal naquela imagem que qualquer pessoa conseguia entender.

Fora então que descobrira o poder da fotografia. Com frequência, dava por si a desejar ter mais tempo para os seus trabalhos artísticos, mas até os melhores artistas, e os seus filhos pequenos, tinham de comer. Para uma mãe solteira, um trabalho estável era muito mais importante do que a arte. E os snobes do mundo da fotografia pareciam decididos a ignorar algo que, para ela, era fundamental. No meio de um casamento, eram muitas as oportunidades de encontrar um momento importante. Uma boa fotógrafa saberia onde e como capturá-lo. Num casamento, podia fotografar as pessoas na sua faceta mais real. A mesma história repetia-se de infinitos modos e maneiras e Daisy achava algo fascinante naquela situação.

Intrigava-a a alquimia misteriosa que unia um casal e o impulsionava a embarcar numa viagem que seria para durar uma vida. Uma fotografia bem tirada podia contar essa história várias vezes e em todas as suas manifestações.

Talvez aquele fascínio nascesse do facto de Daisy querer compreender aquele fenómeno por experiência própria. E se fosse capaz de retratar a felicidade daqueles momentos, talvez também fosse capaz de encontrar a sua própria felicidade.

 

 

O casamento não foi perfeito. A meio do brinde, a mãe de Andrea Hubble ficou sem palavras e começou a chorar. O champanhe acabou na primeira hora e o DJ destruiu um altifalante. Uma das damas de honor ficou com urticária porque era alérgica a alguma coisa que comera e a criança de cinco anos que tinha as alianças perdeu-se, embora a tivessem encontrado a dormir debaixo de uma das mesas.

Daisy sabia que, ao fim de algumas horas, nada disso importaria. Enquanto o DJ desmontava o equipamento e os empregados limpavam as mesas, o casal feliz dirigiu-se para a Summer Hideaway, a cabana mais isolada do recinto. Daisy tirou a fotografia final, iluminada pela lua e pelo seu flash preferido de luz estroboscópica, mostrando o casal a percorrer o caminho que conduzia à cabana. Não havia nenhuma dúvida de que a noite acabaria maravilhosamente para ambos, pensou Daisy, enquanto guardava a máquina fotográfica com um suspiro.

Os convidados alojar-se-iam nas cabanas exclusivas que, há anos tinham sido os barracões das crianças, ou nos quartos luxuosos do antigo edifício principal.

Durante o trajeto de regresso, Zach abriu uma lata de cerveja e deu-lha.

Daisy abanou a cabeça.

– Não, obrigada. É toda tua.

Ao contrário do seu colega, não gostava muito de álcool. A verdade fosse dita, o álcool nunca lhe oferecera nada de bom. De facto, a razão por que ficara grávida aos dezanove anos tinha muito a ver com a bebida. No dia em que o filho lhe perguntasse de onde vinham os bebés, teria de encontrar uma maneira de lhe explicar que ele, em particular, chegara de uma superabundância de ponche e de um fim de semana de loucura.

– Nesse caso, brindo a ti – declarou Zach. – E ao senhor e senhora Felizes Para Sempre. A que estejam juntos o tempo suficiente para pagar o casamento.

– Não sejas tão cínico – repreendeu-o Daisy.

Zach Alger também passara por situações muito complicadas. Formavam uma boa equipa. Para Daisy, Zach era muito mais do que um assistente e operador de câmara. Ainda que, para sua tristeza, fosse um dos seus temas favoritos, com aquelas feições tão angulosas e aquela palidez nórdica que o fazia parecer quase albino. Zach sempre se envergonhara daquele cabelo quase branco, um cabelo que parecia absorver todas as cores possíveis e que Daisy sempre considerara muito frio. Algumas das fotografias que lhe tirara tinham tido uma boa saída comercial. Segundo parecia, a tez clara e aqueles olhos de um frio invernal, eram muito populares no Japão e na Coreia do Sul. Em alguma parte de Oriente Longínquo, o rosto de Zach ajudava a vender colónia para homens e telemóveis.

Em qualquer caso, não os suficientes para pagar as contas deles. Zach também acabara de sair da universidade, onde se preparara como técnico de imagem e som. O que Daisy mais apreciava em Zach era que era um bom amigo com quem era fácil falar, porque não se sentia julgada com ele.

– Só estou a dizer…

– Não te preocupes com isso. Angustias-te com tudo.

– Sim, como se tu não o fizesses…

Nisso, tinha razão. Daisy também tendia a preocupar-se com tudo. Quando se tinha um filho, aquilo parecia transformar-se numa parte da personalidade.

– Se fôssemos capazes de condensar todas as nossas angústias – sugeriu Daisy, – geraríamos energia suficiente para mexer a carrinha.

– A única coisa que preciso é de energia suficiente para chegar ao fim do mês.

Zach bebeu um gole de cerveja e permaneceu em silêncio, olhando pela janela e vendo como se afastava Avalon ao fim da noite. As pessoas dali brincavam e diziam que retiravam as calçadas às nove, mas isso era um exagero. Zach diria que, às oito, já as tinham retirado.

Nem Zach nem Daisy precisavam de preencher o silêncio com conversas sem importância. Conheciam-se desde que estavam no liceu e ambos tinham tido de enfrentar testes difíceis durante a adolescência. Enquanto Daisy se tornava mãe solteira, Zach tivera de se confrontar com a bancarrota do pai e o seu encarceramento por crimes de corrupção. Não era precisamente a melhor receita para desfrutar de uma vida tranquila.

Mas ambos tinham conseguido seguir em frente. Tinham padecido das consequências do que se passara, mas ambos continuavam de pé. Zach conseguira abrir caminho a trabalhar metodicamente para saldar as dívidas que contraíra como estudante. E Daisy também conseguira superar uma série de decisões erradas. Sentia-se como se estivesse a viver ao contrário: começara por ter um filho quando ainda era adolescente. Depois, tinham chegado os estudos e o trabalho. No fim, encontrara um certo equilíbrio na sua vida. Mas havia algo que a evitava. O objeto das suas fotografias de cada fim de semana, aquilo por que os seus clientes brindavam e celebravam. O amor e o casamento.

Nada disso devia importar. E desejava acreditar que a sua vida estava bem tal como era, mas sabia que não podia enganar-se. Para Daisy, era um desafio olhar para o passado e não se arrepender de algumas das decisões que tomara ao longo da sua vida. Poderia ter tido a sua própria fotografia de casamento. Na Véspera de Natal do ano anterior, tivera uma proposta matrimonial que não esperava. Mesmo naquele momento, depois dos meses passados, bastava-lhe recordá-lo para se alterar.

Ao pensar naquela noite que poderia ter-lhe mudado a vida, agarrou-se ao volante com força. Não podia evitar questionar-se se teria feito o que devia ou se teria fugido da única coisa que podia salvá-la.

– Charlie ficou com o seu pai esta noite? – perguntou Zach, quebrando o silêncio.

– Sim. Dão-se muito bem – diminuiu a velocidade para evitar uma família de guaxinins.

O maior dos três animais deteve-se e virou os seus olhos resplandecentes para o carro antes de se refugiar com o resto da sua família na berma.

O pai de Charlie, Logan O’Donnell, fora um adolescente tão despreocupado e inconsciente como a própria Daisy. Mas, tal como acontecera com ela, a paternidade mudara-o. E Logan, quando Daisy precisava que ficasse com Charlie alguma noite, acedia sempre a isso de bom grado.

– E como vão as coisas com Logan? – perguntou Zach.

Daisy ficou rígida.

– Se houvesse alguma coisa para contar, serias o primeiro a saber.

A sua relação com Logan era complicada. Sim, essa era a única palavra que lhe ocorria para descrever a relação: complicada.

– Mas…

– Mas nada.

Virou numa esquina e saiu para a praça da vila. Àquela hora da noite, não havia ninguém nos arredores. Zach vivia num apartamento situado por cima da padaria Sky River. Quando eram adolescentes, ambos trabalhavam lá. Naquele momento, uma nova geração trabalhava com as misturadoras enormes àquela hora da madrugada. Era difícil de acreditar, mas tanto Zach como ela tinham deixado de ser aqueles adolescentes para se tornar adultos.

Virou no estacionamento.

– Amanhã, estarei às dez no estúdio – disse Daisy ao colega. – Prometi a Andrea que, no sábado, poderia dar uma vista de olhos a tudo o que fizemos.

– Mas sabes todas as horas que gravei? – gemeu Zach.

– Sim, sei. Só lhe disse que podia dar uma olhadela. Eu gosto desta noiva, Zach. Quero que seja feliz.

– Mas esse não é o trabalho do noivo?

– Tem quatro irmãs mais novas.

– Sim, eu sei. Pareciam incapazes de se afastar da câmara – abriu a porta do passageiro, empurrando-a com o ombro, e saiu.

A luz dos candeeiros dava ao seu cabelo um tom alaranjado.

– Talvez não conseguissem afastar-se de ti – sugeriu Daisy.

– Sim, claro.

Provavelmente estava corado, mas, com aquela luz, era impossível dizê-lo. Zach nunca gostara muito de encontros. Embora não quisesse admiti-lo, estava apaixonado por Sonnet, a meia-irmã de Daisy, desde que estava na infantil.

– Boa noite, Zach! – despediu-se Daisy.

– Até amanhã. E não fiques acordada até muito tarde.

Conhecia-a bem. Normalmente, Daisy não era capaz de resistir à tentação de descarregar as fotografias depois do casamento. Gostava de incluir alguma fotografia no seu blog para que a noiva tivesse uma ideia de como estavam a correr as coisas.

Daisy vivia na rua Oak, numa casa muito simples. Levou o seu tempo a entrar. Uma das piores coisas de criar Charlie com um homem com que não vivia era que sentia a falta dele com loucura quando estava com o pai.

Fechou a porta atrás dela e acelerou o ritmo da respiração ao sentir-se rodeada pelo silêncio da casa. Nunca gostara de enfrentar o silêncio. Convidava a pensar e, quando pensava muito, cresciam as preocupações. E quando cresciam as preocupações, ficava nervosa. E quando ficava nervosa, transformava-se numa má mãe. Era um círculo que parecia interminável.

Talvez devesse ter um cão. Sim, um cão carinhoso e desarrumado que saísse para a receber com uivos de alegria. Um animal que não a julgasse e a ajudasse a esquecer todas aquelas coisas em que não queria pensar.

– Um cão – afirmou, tentando expressá-lo em voz alta. – Fantástico!

Dirigiu-se para o estúdio, tirou os cartões de memória da máquina fotográfica e examinou as imagens, uma a uma. Algumas eram-lhe familiares, eram fotografias que tirava em todos os casamentos porque era isso o que esperavam dela: a primeira dança, com a silhueta do casal recortada contra o céu noturno, os pais do noivo e da noiva a partilhar um brinde… Outras, eram únicas, nelas, mostrava um olhar ou um gesto que até então não observara. Apanhara a avó da noiva a sorver uma ostra com os olhos fechados de prazer, o tio da noiva com o rosto arrebatado pelo entusiasmo enquanto ouvia uma canção e uma das damas de honor a evitar de forma evidente agarrar no ramo. E havia uma fotografia que superava todas as outras.

Era a fotografia que tirara no último momento, em que apareciam os noivos de mão dada, a atravessar a pradaria. Aquela fotografia mostrava uma história, falava de quem eram os noivos, retratava-os como casal. Eram dois seres que andavam juntos, unidos pelo vínculo das suas mãos, que parecia eterno.

A pena era Jake, recordou-se, enquanto abria o programa de edição. O cão que aparecia ao fundo teria de desaparecer. Enquanto retocava a fotografia, estudou o brilho de luzes da erva, o reflexo distorcido do casal na água, a emoção incontrolável da noiva e a alegria resplandecente do noivo.

A fotografia era boa. Melhor do que boa. Era uma fotografia digna de um concurso.

Ao pensar nisso, desviou o olhar para a pasta que tinha no ecrã da secretária. Era lá que devia guardar as fotografias para o concurso do MOMA, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. As melhores fotografa recebidas no concurso seriam expostas na secção de Artistas Emergentes. Aquele concurso era o mais competitivo do mundo da fotografia, porque ser selecionado abria numerosas portas e lançava a carreira de qualquer fotógrafo. Daisy tinha muita vontade de enviar o seu trabalho.

No entanto, a pasta estava quase vazia. Era como a fresta de uma porta por trás da qual não se vislumbrava nada do interior. Nem todas as boas intenções do mundo, nem toda a ambição, poderiam dar a Daisy a única coisa de que precisava para completar o projeto e enviar os materiais: o presente do tempo. Às vezes, dava por si a questionar-se quando a sua vida poderia ser realmente dela.

Deixou de lado a sua frustração, concentrou-se novamente na fotografia da noiva e pô-la no blog da empresa. Recostou-se na cadeira, olhou para a fotografia e permitiu-se chorar. Não queria que ninguém soubesse que a visão de um casal feliz a fazia chorar. Não queria que ninguém fosse testemunha daquela necessidade, daquele desejo. Sozinha, na escuridão da noite, chorou. E, depois, desligou o computador.

Nessa altura, já era uma da madrugada e tinha de ir para a cama. Quando foi apagar as luzes, viu que lhe tinham posto o correio por baixo da porta. Baixou-se para pegar nele. Havia folhetos de publicidade. Pedidos de trabalho, notícias sobre reuniões de vizinhos, cupões que nunca usaria e… Um envelope com a sua morada escrita com uma letra que conhecia perfeitamente.

O coração acelerou. Rasgou rapidamente o envelope.

 

Por meio da presente carta, convidamo-la para a nomeação de Julian Maurice Gastineaux como Tenente da Força Aérea dos Estados Unidos do Destacamento 520. O ato terá lugar no sábado, dia catorze de maio, às 13 horas no Startle Auditorium.

 

Na parte de trás do cartão, o próprio Julian tinha escrito: Espero que venhas, preciso de falar contigo. J.

Era impossível dormir depois de ter recebido aquele convite. E era uma loucura aperceber-se de que um simples nome podia despertar novamente infinitas perguntas do que poderia ter sido a sua vida se tivesse seguido outros caminhos. Porque Julian Gastineaux, que em breve seria tenente, era o único caminho de que lamentava ter-se desviado.

 

Dois

 

Acampamento Kioga, condado de Ulster

Há cinco anos

 

Durante o verão prévio ao seu último ano de liceu, a última coisa que Daisy queria era ter de se alojar numa cabana no lago, com o pai e o irmão. Mas não tinha outro remédio. Tinha de o fazer. Era obrigada.

Embora nenhum dos seus progenitores lho tivesse dito, sabia que a sua família estava prestes a separar-se. Os seus pais já não conseguiam continuar a fingir que eram um casal feliz, embora tivessem tentado durante anos. A solução do pai fora abandonar a casa de Upper East Side em que a família vivia, mudar-se para uma das cabanas daquele complexo que a família Bellamy possuía no lago Willow e agir como se não se passasse nada.

Mas claro que se passava alguma coisa e Daisy estava mais do que disposta a demonstrá-lo. Pusera na sua mochila uma boa dose de produtos para o cabelo, um iPod, uma máquina fotográfica e uma boa quantidade de tabaco e marijuana.

E embora estivesse decidida a ignorar a beleza fascinante da paisagem, dera por si intrigada com aquela solidão profunda, com aquela quietude omnipresente e com a vista arrebatadora do lugar.

A última coisa que esperava ali, no meio do nada, era conhecer alguém interessante. Mas conhecera um rapaz da sua idade que também estava condenado a suportar um acampamento de verão, embora por motivos completamente diferentes.

Da primeira vez que o vira a entrar no pavilhão principal à hora de almoço, sentira uma onda de calor dentro dela e tivera a sensação de que talvez o verão fosse menos aborrecido do que temia.

Aquele adolescente parecia representar todos os perigos contra os que os adultos a acautelavam. Era um rapaz alto, magro e musculado, andava de uma maneira que exsudava confiança e até arrogância. Tinha o rosto escuro dos mulatos e tinha tatuagens no braço, rastas e brincos.

Dirigiu-se para a mesa em que Daisy estava sentada, como se aquele calor que irradiava o atraísse para ela.

– Suponho que imaginas que este é o último lugar que teria escolhido para passar o verão – foi o seu cumprimento.

– E suponho que sabes que também não teria escolhido um lugar como este – indicou Daisy, tentando aparentar a mesma frieza. – O que estás a fazer aqui?

– Podia escolher entre vir para este esgoto com o meu irmão Connor ou ficar num centro de menores – indicou, com uma indiferença pasmosa.

Um centro de menores. Dissera aquelas palavras presumindo que, para Daisy, eram algo natural. Mas não era. Os centros de detenção de menores eram algo próprio dos jovens dos guetos.

– És irmão de Connor?

– Sim.

– Não parecem irmãos.

Connor era um rapaz branco e com aspeto de pertencer ao mais amadurecido da sociedade, um descendente dos homens das terras do norte, enquanto Julian tinha um aspeto escuro, perigoso…

– Somos meios-irmãos – esclareceu, com indiferença. – Filhos de pai diferente. Connor não quer que esteja aqui, mas a minha mãe obriga-o a cuidar de mim.

Connor Davis era o empreiteiro que estava a cargo da remodelação do acampamento Kioga, que devia estar preparado para as bodas de ouro dos avós de Daisy. Supunha-se que todos tinham de ajudar naquele projeto, mas a última coisa que Daisy esperava era encontrar-se com alguém assim no acampamento. Antes de ter sabido sequer o seu nome, no mais profundo dela e da forma mais misteriosa imaginável, tivera a certeza de que aquele rapaz estava destinado a ser alguém importante para ela.

Chamava-se Julian Gastineaux e, tal como ela, estava prestes a iniciar o último ano de liceu. Além disso, não tinham nada em comum. Ela era de Upper East Side, o produto de uma família privilegiada, e não por isso feliz, e de uma escola elitista. Ele vivia na zona de Chino na Califórnia, muito longe de mansões e palacetes.

Tal como as moscas à volta da luz, rondaram-se um ao outro durante o jantar. Mais tarde, atribuíram-lhes tarefas de limpeza. Daisy não protestou, como fazia habitualmente, quando lhe pediram o trabalho. E, entre eles, não demorou a surgir uma camaradagem íntima. Daisy sentia-se fascinada com a força dos seus braços e a robustez das suas mãos. Quando arrumaram os panos de cozinha, tocaram-se nos ombros e aquele toque afetou-a como nunca acontecera com o contacto com nenhum membro do sexo oposto. Sentiu então um reconhecimento misterioso que a confundia e emocionava ao mesmo tempo.

– Há uma zona para acender fogueiras no lago – propôs, olhando para Julian nos olhos, para ver se ele também sentia alguma coisa, mas foi incapaz de adivinhar. Ainda mal se conheciam. – Podíamos ir fazer uma fogueira.

– Sim e dar as mãos e cantar Kumbaya.

– Algumas noites sem televisão e sem Internet e estarás disposto a cantar qualquer coisa.

– Está bem.

O seu sorriso pronto e fácil adoçava o seu aspeto. Daisy interrogou-se se seria consciente disso.

Localizou o seu pai quando estava prestes a sair da sala de jantar.

– Posso ir acender uma fogueira na margem do lago com Julian? – perguntou.

– Julian e tu? – perguntou o pai, olhando para o jovem com receio.

– Sim, Julian e eu – tentou manter a sua atitude desafiante habitual.

Não queria que o pai pensasse que começava a gostar de estar ali, fechada num acampamento, quando todas as amigas estavam em festas nas praias de Hamptons.

Para sua surpresa, Julian decidiu intervir.

– Prometo-lhe que me comportarei corretamente, senhor.

Foi gratificante ver o pai a arquear as sobrancelhas num ar de surpresa. Evidentemente, não esperava ouvir a palavra «senhor» a sair dos lábios daquele rapaz.

– Asseguro-lhe – indicou Connor Davis.

Aproximou-se do grupo e fixou o olhar no irmão, deixando muito claro que estava a seu cargo.

– Sim, podem ir – acedeu o pai. Certamente, diria a Connor para dar um bom pontapé ao seu irmão assim que abusasse. – Irei ver-vos mais tarde.

– Claro, papá – replicou Daisy, obrigando-se a fingir alegria. – Será fantástico!

Tanto ela como Julian demonstraram ter muito pouco jeito para acender a fogueira, mas não se importaram. Gastaram uma caixa de fósforos e, no fim, só conseguiram acender uma das pilhas de troncos. Quando o vento lançou o fumo na sua direção, Daisy procurou refúgio em Julian. Este não fez nenhum esforço para que se aproximasse, mas também não se mexeu. E, de facto, para Daisy, o facto de poder estar simplesmente ao seu lado foi maravilhoso. Não gostava de sair com os rapazes do liceu e acabar debaixo das bancadas do campo de futebol ou em Brownstones, em Columbia, onde tinha de mentir sobre a sua idade para poder assistir às festas da universidade.

Assim que conseguiram acender a fogueira, Daisy viu Julian com o olhar fixo na superfície escura do lago.

– Estive aqui quando tinha oito anos.

– A sério? Vieste a um acampamento de verão?

Julian riu-se.

– Na verdade, não tive outro remédio. Connor era um dos monitores do acampamento e teve de cuidar de mim durante todo o verão.

Daisy esperava uma explicação posterior, mas Julian permaneceu em silêncio.

– Porquê? – perguntou Daisy.

O sorriso de Julian desapareceu.

– Porque não havia mais ninguém que pudesse fazê-lo.

A solidão que as suas palavras refletiram e o facto de pensar num menino que só contava com o apoio do meio-irmão comoveram-na profundamente. Decidiu não pressionar, pedindo detalhes, mas a verdade era que queria saber muito mais sobre aquele tipo.

– E agora? Qual é a tua história?

– A minha mãe é uma atriz desempregada. Dedicava-se a cantar, dançar e fazer atuações…

Pensava mesmo que ia evitar tão facilmente a sua pergunta?

– Essa é a história da tua mãe. Estava a perguntar-te pela tua.

– Em maio, tive problemas com a lei.

Aquilo estava a tornar-se interessante, pensou Daisy. Era fascinante. Perigoso. Inclinou-se para a frente e continuou a pressionar.

– E o que aconteceu? Roubaste um carro? Traficaste droga?

Ainda não acabara de formular as perguntas quando já estava a desejar que a terra a engolisse. Era uma idiota. Julian ia pensar que tinha preconceitos racistas.

– Violei uma rapariga – confessou. – Três, possivelmente.

– Muito bem, mereço isso. Sei que estás a mentir – abraçou os seus joelhos.

Julian permaneceu em silêncio, como se estivesse a tentar decidir se devia zangar-se ou não.

– Vejamos. Descobriram-me a tomar banho numa piscina pública à noite e a andar de skate na rampa de um estacionamento… coisas desse tipo. Há algumas semanas, apanharam-me a fazer bungee jumping numa autoestrada com uma corda caseira. O juiz ordenou uma mudança de cenário para este verão. Disse que tinha de fazer algo produtivo. Mas posso assegurar-te de que remodelar um acampamento de verão nas montanhas Catskills era a última coisa que queria.

A imagem que Daisy formou dele mudou de forma radical.

– E porque pensaste em atirar-te de uma ponte?

– Porque não pensaste em fazê-lo?

– Oh, deixa-me ver. Para começar, podias partir os ossos todos. Ficar paralítico. Sofrer uma morte cerebral. Ou morrer diretamente.

– Há pessoas a morrer todos os dias.

– Sim, mas atirar-se de uma ponte costuma acelerar o processo – e tremeu.

– É incrível. Eu voltaria a fazê-lo. Sempre gostei de voar.

Acabara de lhe dar a oportunidade perfeita. Daisy procurou no bolso, tirou o estojo dos óculos e abriu-o para lhe mostrar um charro.

– Então, vais gostar disto – pegou num ramo aceso para o acender e inalou com força. – Esta é a minha maneira de voar.

Passou o charro a Julian, esperando tê-lo impressionado.

– Eu passo – replicou ele.

Passava? Como era possível que alguém não quisesse um charro de marijuana?

Julian devia ter-lhe lido o pensamento, porque sorriu.

– Tenho de me cuidar. O juiz da Califórnia deu a escolher à minha mãe: ou passava o verão fora da cidade ou passava uma temporada num centro de detenção de menores. Ao vir para aqui, consegui fazer com que não incluam o episódio da ponte no meu historial.

– Parece-me bem – admitiu Daisy, mas continuou a oferecer-lhe o charro. – De qualquer forma, aqui não te apanharão.

– Não quero.

Era ridículo. Quem pensava que era? Uma espécie de escuteiro? A sua reticência incomodava-a. Fazia-a sentir-se julgada.

– Vamos, é uma erva muito boa. Estamos no meio do nada.

– Não é isso que me preocupa. Simplesmente, não gosto de me drogar.

– Como queiras… – sentindo-se um pouco ridícula, atirou o ramo para a fogueira e observou-o a arder. – Mas uma rapariga tem de procurar a diversão onde pode.

– Então, estás a divertir-te?

Daisy olhou para ele através do fumo com os olhos semicerrados, pensando que ela nunca se fizera essa pergunta.

– Até agora, este verão está a ser… estranho. Agora que penso nisso, devia ser um verão muito mais divertido. É o meu último verão como estudante de liceu. No ano que vem, teremos de nos preparar para ir para a universidade.

– A universidade – Julian inclinou-se para trás, apoiando os cotovelos no chão, – essa é boa.

– Não tencionas ir para a universidade?

Julian riu-se.

– O que se passa?

Daisy deixava que o charro se consumisse entre os seus dedos, sem se preocupar com não estar a desfrutar dele.

– Nunca me tinham perguntado isso.

Custava-lhe acreditar.

– Não te pressionaram com isso desde que chegaste ao nono ano?

Julian voltou a responder com uma gargalhada.

– Na minha escola, pensam que estão a fazer um bom trabalho quando conseguem que os alunos não deixem os estudos, não sejam pais antes de tempo ou não acabem presos.

– Presos onde? – perguntou Daisy, tentando imaginar o que escondia aquela palavra.

– Num centro de detenção de menores ou na prisão.

– Devias mudar de escola.

Julian voltou a rir-se às gargalhadas.

– Não tenho muito por onde escolher. Ando na escola pública que é mais perto da minha casa.

Daisy olhou para ele com uma expressão cética.

– E não te preparam para ir para a universidade.

– A maior parte das pessoas acaba com uma porcaria de trabalho, a lavar carros ou coisas parecidas, e a jogar na lotaria, à espera que mude a sua sorte.

– Mas não és como a maior parte das pessoas – interrompeu-se ao ver a sua expressão divertida. – O que se passa? Porque me olhas assim?

– Eu não sou especial!

Daisy não acreditou nem por um instante.

– Olha, não estou a dizer que a universidade é o paraíso, mas é muito melhor do que lavar carros.

– A universidade custa muito dinheiro. E eu não tenho.

– É para isso que servem as bolsas de estudo.

Recordou a conferência a que assistira há várias semanas. Se fosse por ela, não teria ido, mas tinha de tirar fotografias para a revista do liceu. Tinham chegado uns militares para dar uma palestra sobre como conseguir bolsas de estudo. Daisy estivera distraída durante grande parte da conferência, mas conseguira informação suficiente sobre o assunto.

– Nesse caso, podes entrar no Centro de Treino de Oficiais da Reserva. Os militares vão pagar-te o curso. Dizem que podes ganhar dinheiro enquanto aprendes.

– Sim, mas tem um custo. Tudo tem um custo. Vão enviar-nos para a guerra.

– E talvez te deixem fazer mais do que atirar-te de uma ponte.

– Dedicas-te a recrutar pessoas para esses tipos?

– Só estou a contar-te o que sei.

Na verdade, não importava se Julian ia ou não à universidade. De facto, ela também não tinha um especial interesse em ir. A marijuana fazia-a falar. Guardou o charro, que já apagara, numa bolsinha de plástico, com intenção de o acabar noutro momento ou de o reservar para alguém que quisesse partilhá-lo com ela. O problema era que só queria estar com Julian. Aquele rapaz tinha algo muito especial.

– Deve ser difícil estar numa escola onde ninguém te ajuda a chegar à universidade. Mas o facto de ninguém te ajudar não significa que não possas ajudar-te sozinho.

– Claro – Julian atirou um ramo seco para o fogo. – Obrigado pela publicidade.

– És um ressentido.

– E tu tens a cabeça nas nuvens.

Daisy deu uma gargalhada, deitou a cabeça para trás e imaginou que a sua gargalhada se elevava para as estrelas. Sentia-se muito bem ao lado de Julian e não era por causa do charro. Gostava dele. Gostava muito. Era diferente, especial e misterioso. Não tocara nela, embora Daisy desejasse que o fizesse. Também não a beijara, embora Daisy também estivesse desejosa. Limitou-se a recostar-se e a oferecer-lhe um sorriso subtil.

Mas tinha uns olhos maravilhosos, pensou Daisy, sentindo um calor muito especial no seu interior. Olhou para ele fixamente e pensou que acabara de encontrar a sua alma gémea.

«Olá», pensou em silêncio, «fico feliz por te ter conhecido.»

 

 

O presente

 

Daisy pensava na sua história com Julian muito mais do que devia, sobretudo, em momentos como aquele, a meio da noite, quando estava sozinha e o seu corpo desejava o contacto de outro ser humano. Se a sua vida fosse o guião de um filme, depois daquele encontro tão especial, tudo teria sido muito mais fácil. Teria aumentado o volume da música, teriam cantado os pássaros e ambos teriam desfrutado de um final feliz.

Mas aqueles adolescentes tinham mochilas muito carregadas às costas. Aquele acampamento teria sido o cenário perfeito para um amor de verão. O destino unia dois adolescentes, atraíam-se apesar de proceder de mundos diferentes e, no final do verão, umas famílias incapazes de compreender o seu amor separavam-nos. Perfeito!

Mas as coisas não tinham corrido dessa forma. Daisy e Julian tinham feito o impossível. Tinham resistido à chamada selvagem das suas hormonas revolucionadas, tinham passado o verão num desejo agónico e, por algum tipo de milagre, não tinham sucumbido a ele. Bom, na verdade, não se tratara de um milagre, mas da força de vontade enorme de Julian. Prometera ao irmão que não causaria problemas e Daisy pudera verificar que era um homem de palavra. No fim do verão, cada um deles seguira o seu caminho, resignando-se ao que as circunstâncias ditavam.

Daisy devia ter percebido que nunca tinham tido oportunidade de ser mais do que uma lembrança do verão um para o outro. Naquele outono, uma vez de volta a Manhattan, Daisy tivera um princípio de ano vertiginoso. Cometera um erro que acabara transformado num presente precioso, Charlie, um menino que nascera no verão depois da sua graduação. Mas o facto de ter um filho não significava que tivesse esquecido Julian. Nunca o esquecera. Continuara à espera com a ilusão de que algum dia chegariam a estar juntos. Mas tivera um filho e Julian tinha um sonho para seguir.

Tentou ler nas entrelinhas do convite, uma tarefa inútil, visto que era um convite impresso e idêntico a muitos outros que se tinham enviado. As palavras escritas na parte de trás podiam interpretar-se de muitas maneiras. Precisava mesmo de a ver ou era apenas uma forma de parecer educado?

Não sabia, porque, com Julian, nunca sabia a que agarrar-se. Apesar da sua atração mútua e inegável, há muito tempo que se resignara ao facto de Julian e ela terem seguido caminhos separados. Ele, uma vez graduado em Cornell, concentrara-se nos seus estudos e no programa do Centro de Treino. Ela vivia em Avalon, um lugar que lhe parecera tão deprimente como a Sibéria quando fora passar o verão ao acampamento Kioga. No entanto, acabara por se transformar no seu lar, porque era lá que estava a sua família e lhe parecia um lugar ideal para criar Charlie.

Parecia impossível que Julian e ela pudessem estar juntos sem que algum deles tivesse de sacrificar tudo. Algumas coisas, dizia-se Daisy com frequência, simplesmente, não podiam ser. Mesmo assim, não podia evitar continuar a sonhar e, quando entrava a noite e não conseguia dormir, muitas vezes dava por si a questionar-se se chegaria alguma vez esse momento, se alguma vez experimentaria o amor que capturava com a máquina fotográfica, casamento após casamento.

Uma voz interior interna recordou-lhe que, há pouco tempo, tivera a oportunidade de ser a protagonista de um casamento. Houvera uma proposta de casamento, um anel… Mas ela estava demasiado confusa e assustada para a considerar. Pelo contrário, optara por passar um ano a estudar no estrangeiro, com Charlie.

Oh, Daisy, reprovou-se, como era possível que fosse tão difícil descobrir o que o seu próprio coração queria?

Nervosa e rasgada por dentro, deixou o convite na mesa e afastou-se com o coração apertado de emoção. Julian tivera esse efeito nela desde a primeira vez que o vira quando eram adolescentes.

Apesar dos rumos tão diferentes que tinham seguido as suas vidas, a ligação entre eles persistia. Durante os anos que passara na universidade, ela em New Paltz e ele em Cornell, tinham continuado a ver-se, embora em ocasiões raras. Cada vez que as férias académicas o permitiam e não interferiam com o programa de treino militar e as obrigações de Julian, passavam algum tempo juntos.

E, em todas e em cada uma daquelas ocasiões, o desejo que se acendera há tantos verões, voltava a inflamar-se. Parecia crescer apesar de tudo o que acontecera. Continuavam a procurar-se um ao outro, mas nunca tinham suficiente. Daisy não compreendia, tentava racionalizá-lo, porque estar junto de Julian parecia impossível. As suas vidas continuavam a separá-los. Ele tinha Cornell e o programa de treino militar. Ela tinha Charlie, o trabalho e… o pai de Charlie. Era lógico que as coisas não tivessem funcionado entre eles.

Às vezes, quando Daisy fantasiava com a possibilidade de estar com Julian, tentava imaginar Charlie e Julian juntos, como pai e filho.

Mas o dolorosamente certo era que Julian parecia recusar-se a assumir esse papel. Era encantador com Charlie, mas era óbvio que mantinha as distâncias. Recordava que, uma vez, o menino se confundira e lhe chamara «papá». Julian fizera uma careta e dissera: «Eu não sou o teu papá, menino.»

A última coisa que Julian imaginava era que aquela resposta lhe valeria uma alcunha, porque desde aquele dia, Charlie batizara o seu pai como «pai-menino».

Contra todo o prognóstico, Logan estava a provar ser um grande pai. Tal como Daisy, formara-se na Universidade do Estado de Nova Iorque, a SUNY, e mudara-se para Avalon. Comprara uma agência de seguros a um homem que estava prestes a reformar-se. O negócio ia de vento em popa. Apesar da crise, as pessoas continuavam a precisar de se proteger, no caso de alguma coisa lhes acontecer. Daisy não sabia se Charlie gostava ou não do seu trabalho, mas, por enquanto, o seu acordo pouco convencional estava a funcionar.

Às vezes, Daisy dava por si a interrogar-se se a sua vida ia ser sempre igual.

Suspirou, pegou outra vez no convite e virou-o. A cerimónia parecia algo importante. E era. Tudo o que Julian fizera desde que abandonara o liceu fora importante. Sem dinheiro, com a única ajuda do seu cérebro e da sua ambição, fizera exatamente o que Daisy lhe sugerira que fizesse durante aquele verão. Inscrevera-se no ROTC para poder financiar a universidade. Aquela fora a única vez que Daisy oferecera um conselho a alguém e funcionara. Em troca dos estudos numa das universidades de Ivy League, ele devia entregar quatro anos da sua vida à força aérea, e algo mais se quisesse chegar ter o curso de piloto.

Isso significava que podiam enviá-lo para qualquer parte do mundo.

Para qualquer lado, exceto Avalon, pensou, consciente de que aquele lugar que se transformara no seu lar, um lugar tão diminuto e pitoresco, não tinha o menor valor estratégico para os militares.

Verificou novamente a data em que teria lugar a cerimónia.

Sim, tinha o dia de folga. Na Wendela’s Wedding Wonders trabalhavam vários fotógrafos e técnicos e Daisy não tinha nenhum compromisso para aquele fim de semana. Podia pedir a Logan para ficar com Charlie para poder ir a Ithaca, com a máquina fotográfica na mão, e documentar aquela ocasião feliz com imagens.

Queria ir. Precisava de ir. Precisava de passar algum tempo a sós com Julian. Depois de anos a desejar a sua companhia, de reencontros e separações forçadas pelas circunstâncias, finalmente, teria uma oportunidade de estar a sós com ele.

Faria o que devia ter feito há muito tempo de uma vez por todas.

Já estava na hora de ser realista com Julian e consigo própria. Teria de ser completamente honesta. Daquela vez, diria exatamente o que sentia. E a julgar pelo bilhete que Julian escrevera, era possível que ele estivesse a pensar o mesmo.