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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2002 Janet Justiss. Todos os direitos reservados.

A HONRA DA MINHA DAMA, Nº 111 - Setembro 2013

Título original: My Lady’s Honor

Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2006

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-3413-2

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

Um

 

– O seu primo Nigel... quero dizer... o novo barão de Southford, está à sua espera na biblioteca – disse-lhe a donzela, ao mesmo tempo que fazia uma reverência.

Gwennor Southford suspirou e tirou o avental que pusera para ajudar Jenny a arrumar o que sobrara do almoço que tinha servido depois do enterro do seu pai.

– Obrigada, Jenny. Diz-lhe que vou já.

Depois de a criada sair, Gwen parou para se olhar ao espelho do hall, coberto com um pano preto. Queria certificar-se de que não lhe tinha escapado do coque qualquer madeixa na qual o seu primo exigente pudesse fixar-se. Nigel, que era um autêntico dândi londrino, estava habituado a olhar para ela com uma expressão de espanto, como se Gwen tivesse sempre o nariz mascarrado ou uma mancha no vestido, coisa que certamente era verdade. Ou talvez fosse simplesmente o facto de que, não conseguindo olhar para ela de uma altura superior, o primo tentasse intimidá-la com aquele olhar um tanto desdenhoso. Embora aqueles olhares não a amedrontassem habitualmente, Gwen sentia-se frequentemente como um escaravelho enorme, feio e vulgar que observavam através de uma lupa.

Verificou então se o seu cabelo denso e preto continuava bem preso e encaminhou-se para a biblioteca. Não conseguia adivinhar o que queria dizer-lhe o primo Nigel que não pudesse ter-lhe dito diante dos convidados.

Talvez só quisesse queixar-se outra vez da comida ou do alojamento, coisas que, sem dúvida, ele depressa «melhoraria», contratando um cozinheiro estrangeiro para que criasse pratos dignos do seu paladar refinado e um batalhão de operários, responsáveis por reformar e pôr na moda os quartos centenários.

Gwen fez uma careta de desgosto ao imaginar o seu querido lar transformado pela mão grosseira do primo. Oxalá conseguisse convencê-lo a enviá-la para Londres assim que a temporada começasse. Assim poderia encontrar um marido e um novo lar para si e para Parry.

Tentou acalmar a sua inquietação, bateu à porta da biblioteca e entrou. Porém, teve de conter uma pontada de dor ao ver o primo sentado na poltrona preferida do seu pai, atrás da secretária grande. Procurou não pensar em coisas que pudessem causar-lhe outra onda de aflição inútil, fez uma reverência e obrigou-se a olhar para Nigel.

O primo voltou a submetê-la a um escrutínio longo e minucioso.

– Bom, prima Gwennor, receio que não tenhas melhorado muito com os anos. Todavia, pelo menos, tiveste a o bom senso de recolher esse cabelo de camponesa e o resto dos teus traços não são de todo desagradáveis. Creio que, com um dote pequeno, poderás arranjar-te bastante bem.

– Obrigada, primo – agradeceu Gwen, com um sorriso doce, enquanto cerrava os dentes, – pelos teus amáveis sentimentos pela morte do meu pai. A... alegra-me contar com a tua aprovação.

– Essa tua tendência para zombares das pessoas nos momentos mais inoportunos não te favorece, Gwennor – respondeu ele, altivamente. – Tenho a certeza de que te dei os sentimentos ontem, quando cheguei. No entanto, não convém começar a remexer no passado. Em Southford vão mudar muitas coisas, agora que sou o barão, portanto convém que te vás habituando à ideia.

– Naturalmente, primo – não o ia tratar por milorde, pensou, raivosa, embora ela já não fosse a filha do senhor da casa, mas uma parente pobre que dependia da sua caridade. – O que disseste acerca do meu dote, significa que pensas mandar-me para Londres esta temporada, como te pedi? Estou disposta a partir assim que fizer a minha mala – Gwen baixou os olhos e juntou as mãos com tanta submissão aparente que Nigel, que face às aparências não era tolo, olhou para ela com receio.

– Sim, estive a pensar no teu futuro. Acho que os dois estamos de acordo em que não convém aos nossos interesses que permaneças em Southford. Afinal de contas, o modo como governavas a casa nos tempos do teu pai, embora bastante adequado, creio, para um barão galês de gostos um tanto rústicos, não é suficiente para mim.

– Não, primo, sem dúvida que este tipo de lar não te convém.

– Fico contente por estarmos de acordo nesse aspecto. Dado que, com as mudanças que tenho previstas para adaptar a casa e os edifícios exteriores às minhas exigências, os rendimentos irão sofrer uma forte diminuição, não vejo razão para desperdiçar dinheiro na temporada londrina. Já não tens idade de ser apresentada à sociedade, não és muito bela e o teu dote não é muito grande. Não quero ser grosseiro. No entanto, qualquer um veria que as tuas possibilidades de atrair a atenção de um cavalheiro rico e influente que mereça a pena fazer o dispêndio de te enviar para Londres são, lamento dizê-lo, muito remotas. Nisto deves confiar nos meus conhecimentos, muito maiores do que os teus, a respeito dos gostos dos cavalheiros da alta sociedade.

Gwen, que estava tão habituada ao desdém do primo que o seu sarcasmo pouco a atingia, ficou a pensar nas implicações do que Nigel acabava de dizer. Não ia mandá-la para Londres. Talvez a mandasse para Bath ou para Gloucester?

– Fiz-te vir aqui para te anunciar que arranjei uma solução para este dilema delicado. Tenho, naturalmente, consciência de que tu, sendo uma Southford e minha prima, deves casar-te com um homem de boa posição, embora não tão exigente como eu. Por isso escolhi um marido para ti, prima. Podes congratular-te porque depressa te tornarás na esposa de lorde Edgerton.

Gwen ficou paralisada.

– Edgar Edgerton, o barão de Edgerton? – balbuciou, confiante de que houvera algum mal-entendido.

– Com efeito – respondeu o novo barão de Southford, com um sorriso benevolente. – Vejo que a minha decisão te deixou pasmada. Talvez lorde Edgerton seja um pouco mais velho do que tu. Contudo, continua a ser um homem bem-parecido e os seus seis filhos, essas pobres criaturas órfãs de mãe, dar-te-ão imensas oportunidades para exercitares a tua predilecção pela frugalidade e pela vida ao ar livre.

Gwen engoliu em seco. Edgar Edgerton, que era companheiro de caça de Nigel, rondava os cinquenta anos. Era baixo e robusto e tinha uma tez corada que indicava a sua tendência para padecer de gota. Vivia todo o ano nas suas terras, no condado de Lincoln e, que Gwen soubesse, poucas coisas mais lhe interessavam aparte dos seus estábulos e dos seus galgos.

– Eu... ouvi dizer que lorde Edgerton é um homem... extremamente amável – disse, com um leve tremor na voz. – Porém, preocupam-me um pouco os seus filhos, que, conforme dizem, são um tanto... impulsivos – para falar a verdade, as histórias alarmantes dos filhos do barão, que o seu pai contara quando voltara da caçada com eles no ano anterior, faziam abanar a cabeça com desalento até um homem geralmente tão indulgente como lorde Southford. – Espero que não sejam muito maus com Parry.

Nigel, que estava a tirar um fio da manga da sobrecasaca preta impecável, ficou parado.

– Parry? – perguntou, com o sobrolho franzido. – O que tem ele a ver com isto?

– Bom, eu pensava que, já que não... te dás bem com ele, que ele me acompanharia quando me casasse.

– De onde tiraste uma ideia tão ridícula? – perguntou o primo num tom ofendido. – Usa a pouca esperteza que tens, Gwennor. Para começar, o teu pai designou-me como tutor legal do rapaz, depois da sua morte. Embora não sejamos parentes consanguíneos, não penso deixar de cumprir esse dever, por mais desagradável que me seja. Além disso, lorde Edgerton jamais permitiria que esse degenerado rondasse pela sua casa, como é normal.

– Parry não é degenerado! – respondeu Gwen, com veemência. – Era mais inteligente do que tu, até ter levado o coice do cavalo.

Nigel olhou para ela com frieza.

– Vou ignorar esse comentário só porque sei que ainda tens a convicção ridícula de que, como Parry foi ferido ao ir ajudar-te, és obrigada a defendê-lo. Contudo, não ponhas à prova a minha boa vontade. Reconheço que foi uma tragédia acontecer uma coisa daquelas a uma criança tão pequena. Porém, já é hora de acabares com tanto sentimentalismo. Agora tem... dezoito anos? Devia estar trancado há anos, em vez de se passear livremente pelos bosques e pelos Campos de Southford, envergonhando a família e ameaçando os vizinhos.

– Parry não ameaçou ninguém! – protestou Gwen. – Trata toda a gente com consideração. E também não é uma vergonha. Toda a gente em Southford o conhece e aprecia – «menos tu», pensou furiosa.

– Não é uma vergonha? – replicou Nigel. – O que me dizes de quando interrompeu o funeral do teu pai, entrando na igreja com as botas sujas, o casaco roto e os bolsos cheios de animais? – Nigel fez uma careta de repulsa.

– Eram crias de coelho – respondeu Gwen, e procurou refrear as lágrimas. – O meu pai estava a tentar criar uma nova raça, cruzando os coelhos domésticos com os das montanhas, que têm a pelagem mais escura. Parry levou-os como presente de despedida.

– Presente de despedida...! Ora! – exclamou Nigel, com desdém. – Esse idiota nem sequer sabe que o falecido era seu padrasto. E também não sabe o que significa a morte.

– Enganas-te, primo Nigel. Parry sabe quem era meu pai – sublinhou a palavra– e sabe o que é a morte.

Talvez Parry não compreendesse a ameaça que significava para a sua posição a morte do seu padrasto. Todavia, sabia que o idoso que o tinha tratado com amor e respeito não estava mais com ele.

– Em qualquer caso, eu não gosto que ande por aqui, de modo que terei de fazer algo a esse respeito. Edgerton quer que te instales em sua casa entre o fim da temporada de caça e o princípio das colheitas da Primavera, portanto o casamento será no fim desta semana, aqui, em Southford. Dada a idade do noivo e a urgência dos preparativos, não vejo necessidade de complicar as coisas. Uma cerimónia simples e uma pequena recepção serão suficientes.

«Maldito miserável», pensou Gwen, demasiado furiosa para responder. Ainda não se tinha lido o testamento e já o novo barão decidia gastar a menor quantia de dinheiro possível com a filha do amo anterior da casa.

– Felicidades pela tua boa sorte, Gwennor. Agora podes ir começar a organizar os preparativos – agitou imperiosamente a mão, apontando para a porta. Furiosa e perplexa, Gwen deu meia volta. – Na verdade – a voz do primo fê-la parar antes que chegasse à porta, – como o teu noivo chega amanhã, penso... ocupar-me imediatamente do teu meio-irmão. A partir de agora, Parry ficará preso no sótão, onde ficará sob controlo, embora bem tratado, com os gastos mínimos. Ah! Caso os teus nervos se ressintam antes do casamento e tentes adiar a cerimónia, recorda-te que também posso encerrar-te, isto, claro, caso se te lembres de te opor aos meus planos – fez uma pausa e olhou para ela, pensativo. Suportou-lhe o olhar, desafiante, sem se importar que o seu semblante denunciasse o seu desagrado. – Só te aviso uma vez – disse Nigel, com suavidade. – Em menina, mostravas uma tendência deplorável para a teimosia e para a desobediência, traços que duvido que o teu pai, sendo tão fraco de vontade, conseguisse apagar. Eu não sou homem que se deixe manipular por uma solteirona amargurada, demasiado habituada a fazer a sua santa vontade. Agora sou o amo desta casa e os criados têm de me obedecer – assentiu. – Só isso – Nigel baixou a cabeça e ficou a olhar para um livro de contas que havia sobre a mesa.

Gwen apanhou as saias, atravessou a correr o hall, desceu pela escada de serviço até à despensa e saiu pela porta de trás. Na sua mente amontoava-se uma mistura volátil de pena, angústia, preocupação pelo seu irmão, fúria pelas ameaças do seu primo e medo pelo seu próprio futuro.

O frio dos últimos dias de Inverno fê-la estremecer. Porém, continuou a correr até que, deixando para trás os jardins, chegou ao estábulo, que estava rodeado por uma série de abrigos e currais onde o seu irmão levava a cabo as experiências com as crias do seu pai. Distinguiu a cabeça morena de Parry inclinada sobre uma das jaulas e encaminhou-se para ele. O rapaz pareceu ouvir os seus passos suaves e levantou a cabeça com um sorriso. Todavia, à medida que Gwen se aproximava, o seu sorriso foi-se desvanecendo.

– Não trazes xaile! Vais constipar-te, Gwen – antes que ela conseguisse impedi-lo, tirou o casaco velho de lã e pô-lo sobre os ombros dela.

Gwen abraçou-o com todas as suas forças e começou a chorar. Como gostava do seu irmão... Mesmo que não se sentisse responsável pela sua doença, Parry possuía um espírito tão nobre e generoso que teria gostado dele de qualquer modo, como gostava de toda a gente no condado, devido à sua capacidade para curar e ao seu temperamento doce.

Parry tinha um dom com os animais e com as crianças. Não só dirigia as experiências do seu pai, como também os vizinhos de todo o condado o procuravam para que tratasse dos seus animais doentes, o que proporcionava, face ao que Nigel pensava, pequenos ganhos para as arcas de Southford.

O que podia ela fazer? perguntava-se Gwen, enquanto abraçava o irmão. Detestava Nigel. No entanto, não podia cometer o erro de o subestimar. Se o seu primo disse que ia encerrar Parry, Gwen não tinha dúvidas de que o faria. Também a encerraria se tentasse impedi-lo.

Gwennor soltou por fim Parry. O irmão observou o seu rosto.

– Estás triste, Gwen? Sentes a falta do pai? Eu também. Olha para estes pequeninos – abriu uma jaula de vime e apontou para umas bolinhas de pêlo. – Mitsy teve-os no domingo passado... são todos castanhos, como ele queria. Acho que está feliz, olhando para eles do Céu.

– Tenho a certeza que sim – «muito mais feliz do que nós», pensou ela, com amargura.

Desde que recuperara dos seus ferimentos, o seu irmão vivia completamente feliz. Passava o dia a passear pelas terras de Southford, apanhando e socorrendo os animais que tanto amava. Sem eles, iria definhar até à morte, fechado no sótão de Southford Manor.

Gwennor, que já tinha feito vinte e cinco anos, não tinha ilusões a respeito da sua beleza e das suas possibilidades. Encarregara-se da administração da casa aos quinze anos, depois da morte da sua madrasta, a única mãe que, na verdade, conhecera, pois a sua morrera ao dar à luz. Preocupada com o seu meio-irmão e com a saúde do pai, tinha resistido às poucas tentativas do seu pai de a enviar para Londres. Se lorde Edgerton estivesse disposto a aceitar Parry, ter-se-ia entregue a ele, mesmo que não fosse com entusiasmo, pelo menos seria com resignação. Contudo, aceitaria o barão o seu irmão?

Com certeza que Nigel estava certo. A maioria das pessoas tentava manter-se afastada de qualquer pessoa que sofresse de uma deficiência mental, pois costumava considerar um castigo divino que recaía sobre o indivíduo e a sua família. Sendo amigo de Nigel e um fanático quanto à pureza de sangue dos seus cães e cavalos, Edgerton sem dúvida estaria de acordo com a solução dada pelo seu primo para se livrar do fardo do irmão atrasado da sua futura esposa. Não, concluiu Gwen. Parry não encontraria em Edgerton um defensor.

Se Edgerton não aceitava o seu irmão, ela não tinha razão alguma para se casar com ele, face às ameaças horríveis de Nigel. Não tinha passado os dez anos anteriores a fazer a sua própria vontade, como dizia o primo, para agora sucumbir docilmente aos planos detestáveis do novo barão de Southford.

– Tenho de dar de comer aos outros – disse Parry. – Ajudas-me?

– Não, tenho de voltar para casa. Toma o teu casaco, antes que apanhes uma constipação.

Estendeu-lhe o casaco. Porém, ele recusou com um sorriso.

– Depois. Tenho estes... – levantou um punhado de coelhos recém-nascidos – para me aquecer.

Gwennor voltou-se para regressar à casa, sentindo-se cada vez mais angustiada. A manhã do dia seguinte estava muito perto.

Tinha que se lembrar de alguma maneira de sair daquele problema antes que voltasse a amanhecer. Porém, era melhor que o seu irmão se mantivesse afastado da casa, até ela resolver o que fazer.

– Parry! – gritou-lhe. – Nigel descerá para jantar.

O sorriso do irmão desvaneceu-se. O primo do seu pai era a única pessoa pela qual Parry sentia um desagrado profundo.

– Tenho de ir jantar com ele?

– Não. Fica com os animais. Depois trago-te qualquer coisa. Não é preciso jantarmos os dois com ele – fez uma careta exagerada de asco e o irmão desatou a rir-se.

– Obrigado, Gwen. Far-te-ei uma surpresa esta noite.

Gwen sabia que seria uma surpresa encantadora: um ninho de pássaros que Parry tinha resgatado ou um cristal ou rocha de forma e cor caprichosos, ou uma teia de aranha, tão complexa e bonita como a gravura de um pintor.

Não era, de certeza, como a surpresa que o seu primo tinha preparado para ele.

«Enquanto eu tiver fôlego, Parry não sofrerá esse destino», prometeu Gwen, e empreendeu com passo decidido a volta para casa.

Dois

 

Gwennor passeava pelo pátio do estábulo, dando voltas à cabeça. Teriam de se ir embora naquela mesma noite, em segredo, quando o primo e os criados se retirassem. Diria a Jenny e à cozinheira quando preparassem o jantar de Parry que pensava ficar a trabalhar com o irmão até mais tarde, coisa que fazia com frequência e que impediria Nigel de despedir as suas criadas por não o terem alertado de que tinha saído de casa. Como o primo dormia até ao meio-dia, era muito possível que não descobrisse o seu desaparecimento até o dia seguinte já ir avançado. Talvez, pensou com um sorriso malicioso, só viesse a descobrir quando o seu querido amigo Edgerton chegasse e mandasse comparecer a sua noiva.

Tinha de preparar uma mala pequena: algo que pudesse transportar facilmente. Levaria as jóias da sua mãe para que o primo não as vendesse e ficasse com o dinheiro, portanto teria de entrar às escondidas no escritório antes do jantar, enquanto Nigel dormia a sua sesta. Tendo em conta que ia poupar ao primo o dispêndio de um copo-d’água, sentia-se no direito de levar algumas das moedas que encontrasse no cofre da casa.

Teria também de fingir estar a preparar o casamento. Embora não fosse preciso mostrar entusiasmo, Nigel estranharia se descobrisse que não tinha dado instruções aos criados. Além disso, teria de os avisar da chegada iminente de lorde Edgerton.

Depois de resolver os pormenores da fuga, ficou a pensar no problema, muito mais espinhoso, de onde iriam e como chegariam até lá.

Entretanto, já tinha chegado à casa e parou diante da porta da despensa. Ainda era demasiado cedo para se arriscar a entrar no escritório. O melhor seria subir às escondidas ao seu quarto para fazer a mala.

Subiu pela escada de serviço até ao seu quarto, aproximou-se da janela e ficou a olhar distraidamente para o roseiral e para o jardim de ervas aromáticas. Oxalá o seu primo Harry não estivesse com Wellington na Península! Harry e ela sempre sentiram um afecto profundo. Durante a infância tinham sido companheiros de travessuras. Se ele estivesse em casa, sem dúvida que a teria ajudado a escapar. Todavia, embora a sua mãe, a tia Frances, residisse a dois dias a cavalo de Southford, aquela senhora viúva não conseguiria fazer frente a Nigel, no caso de o primo decidir ir atrás dela.

Será que Nigel iria persegui-la? Ou lavaria simplesmente as mãos e alegrar-se-ia de se ter livrado dela? Se não fosse os seus planos de a casar com lorde Edgerton, Gwen teria pensado na última hipótese. No entanto, não acreditava nas palavras do primo: que tinha acordado o seu casamento com o fim de lhe garantir uma boa posição. Suspeitava que aquele acordo encerrava algo mais, e, conhecendo as afeições do primo, certamente, havia dinheiro pelo meio.

Desde que, depois da morte da madrasta de Gwen, o seu falecido pai se recusara a voltar a casar, Nigel vivia esperando apropriar-se, um dia, de Southford e dos recursos que continha. Os seus gostos no vestir e na decoração, que ele considerava refinados, saíam sem dúvida caros, tal como a sua afeição pelo jogo. Gwen suspeitava que estava seriamente endividado. Talvez devesse alguma coisa a Edgerton e decidira utilizá-la a e ao seu dote para pagar ao barão, sem custo algum para ele.

Se as suas suspeitas estivessem certas, Nigel não tomaria de ânimo leve a ofensa dupla de cair no ridículo perante o amigo e de ao mesmo tempo perder o meio de saldar a sua dívida. Embora não houvesse considerações económicas pelo meio, o facto de Gwennor desafiar a sua autoridade perante lorde Edgerton e a criadagem sem dúvida o faria sair do sério. Com certeza que se enfureceria tanto que iria atrás dela, mesmo que fosse apenas para a levar de rastos para Southford Manor e impor-lhe um castigo exemplar.

Se assim era, como fugir? Se conseguissem chegar até à estalagem mais próxima, era provável que Nigel desse com eles enquanto aguardassem pela carruagem seguinte. Se viajassem a cavalo e ela usasse o pouco dinheiro que conseguisse juntar para alugar novas montadas a cada estalagem, tinha a certeza de que, sendo uma donzela jovem que viajava sem criada, todos os hospedeiros se lembraria dela e o seu rasto seria muito fácil de seguir.

Tinham de conseguir chegar bastante longe para que a raiva de Nigel arrefecesse e a sua perseguição se tornasse tão dispendiosa e incómoda que o primo preferisse deixá-los partir. Contudo, igualmente importante, ou mais, era encontrar um lugar onde pudessem estar fora do alcance de Nigel, caso este conseguisse encontrar o seu rasto.

Harrogate! A resposta ocorreu-lhe de repente. Podiam ir para casa de Alice, a tia da sua madrasta, em Harrogate. Gwen não via a tia desde o funeral da madrasta. Porém, ainda se escreviam e tinha a certeza de que a doce e frívola lady Alice ficaria encantada por lhes oferecer protecção.

O pequeno povoado marítimo onde residia não só ficava afortunadamente longe dali, como também muito dos seus residentes e visitantes eram viúvos, idosos, que iam tomar banho às termas locais. Talvez Gwen pudesse encontrar entre eles um cavalheiro amável que estivesse disposto a casar-se com uma jovem forte e trabalhadora, de boa família, capaz de governar um lar e de se ocupar da sua velhice... em troca do esforço pequeno de aceitar também o seu irmão.

Podia pedir à tia Alice que a ajudasse a procurar marido. Que dama conseguia resistir a fazer de casamenteira? Com sorte, encontraria rapidamente um candidato idóneo e talvez conseguisse casar-se antes de Nigel a encontrar.

Se o novo barão a encontrasse ainda solteira e insistisse para que se casasse com o pretendente da sua escolha, talvez o próprio Edgerton fosse a Harrogate procurá-la. Embora isto parecesse improvável a Gwen.

Bem, pelo menos, já tinha destino. Ficava, no entanto, a questão de como fazer aquele longo percurso sem serem descobertos. Tinha pensado várias vezes nas alternativas, incapaz de decidir qual oferecia maiores garantias de sucesso, quando, de repente, lhe ocorreu uma ideia tão descabida que esteve prestes a desprezá-la de imediato. Decidiu, contudo, que a sua vantagem consistia precisamente em ser tão descabida. Nigel palmilharia os caminhos, procuraria nas estalagens e perguntaria a todos os hospedeiros e a quem encontrasse, num raio de cem milhas, se os tinham visto.

Aproximou-se da sua mesa, abriu a gaveta superior e começou a tirar tudo o que havia lá dentro. Depois de verificar todas as gavetas, conseguiu reunir um punhado de moedas pequenas e um guinéu de ouro. Não era exactamente uma fortuna. Porém, confiava que fosse o suficiente para tentar um rei.

Vestiu rapidamente o seu fato de montar e meteu os seus achados numa bolsinha de pele. Atou o cordão ao pulso, guardou-a na manga e chamou a sua criada.

Jenny chegou tão depressa que Gwennor suspeitou que estivera ansiosamente à espera por saber o resultado da sua conversa com Nigel. Assim que entrou, Jenny perguntou com a familiaridade de quem fora primeiro sua ama e depois sua criada:

– Bom, do que queria falar o novo amo?

– O meu primo pensa que é hora de me casar.

– Louvado seja Deus! – exclamou Jenny. – É o que desejo desde que o seu pai ficou doente. Agora que o novo senhor está aqui, e sendo como é, o melhor é que tenha a sua própria casa, um marido que cuide de si e a proteja. Então, quando vai para Londres?

– Não vou para Londres. O primo Nigel já me escolheu um marido. De facto, chega amanhã.

O entusiasmo de Jenny desapareceu.

– Já lhe escolheu um marido? Quem é, senhora?

– Lorde Edgerton...

O desalento apagou os últimos vestígios de alegria de Jenny.

– Lorde Edgerton! Mas ele tem o dobro da sua idade! Dizem que tem por filhos um bando de vândalos que poriam à prova a paciência da própria Virgem. Com certeza que o seu primo não...

– O meu primo já tomou uma decisão, Jenny, e não consentirá um não como resposta. De facto, ameaçou trancar-me se resistir. Portanto, não faz sentido opor-me. Lorde Edgerton chega amanhã e o casamento será no final desta semana. Nigel diz que será uma cerimónia simples, dadas as circunstâncias – acrescentou, com ironia, – não é preciso felicitares-me.

– Pobre menina! – exclamou Jenny, angustiada. – É horrível que o senhor lhe faça isto.

Gwennor deu um abraço rápido à sua criada.

– Deus te abençoe, Jenny. Tu e o resto da criadagem têm de ter muito cuidado com o que dizem. Têm de continuar a trabalhar para o meu primo.

– Com certeza que nos mandará a todos embora e mandará vir criados de Londres – resmungou Jenny.

– Espero que tenha por todos a estima que merecem. Agora, importas-te de dizer à cozinheira e a Hopkins que preparem um quarto para lorde Edgerton e comecem a fazer os preparativos para o copo-d’água? Falarei com eles amanhã de manhã, todavia agora... – Gwen deixou que a frase se apagasse e procurou causar pena, o que não foi difícil. – Apetece-me ir dar um passeio a cavalo.

– Não estranha? – perguntou Jenny. – Casá-la com um homem que poderia ser seu pai e a toda a pressa, sem sequer dar tempo para fazer um vestido de noiva...! Vá, menina Gwen, vá. O passeio far-lhe-á bem. Eu direi a Hopkins que vá preparando tudo.

– Ah! Parry não janta connosco. Disse-lhe que depois lhe levaria de comer. Acho que... que ficarei até mais tarde com ele para o ajudar com os animais. Afinal de contas, acho que não poderei fazê-lo por muito mais tempo.

– Meu Deus, menina Gwen, o que vai ser do pobre rapaz quando você se for embora? Preocupa-me imenso.

– Sabes que nunca consentiria que magoassem Parry, logo me lembrarei de alguma coisa, Jenny.

– Com a esperteza que tem, menina, tenho a certeza que sim. Agora, vá montar e deixe o resto com a sua Jenny.

Gwennor deu um último abraço à mulher que, durante os últimos dez anos, fora mais uma mãe para ela do que uma criada.

– Obrigada, Jenny. És um anjo.

– Se o fosse, abriria as asas e levá-la-ia para Londres – disse Jenny, abanando a cabeça, enquanto se afastava.

Gwennor correu para os estábulos. Devia completar a sua missão e regressar a tempo de abrir o cofre, antes que o primo Nigel se levantasse da sua sesta. Pirilampo, a sua égua avermelhada, relinchou alegremente ao vê-la aproximar-se da box, que cheirava a feno. Gwen sentiu uma pontada de raiva e tristeza. Outra querida amiga que logo seria obrigada a abandonar.

Despediu-se do rapaz do estábulo, selou a égua e saiu a trote. Ao chegar a campo aberto, deixou que a égua começasse a galopar para que esticasse as patas, depois continuou rapidamente até um prado situado para sul.

– Por favor – suplicou, – que ali ainda estejam.

Quando por fim viu as carruagens pintadas de cores alegres junto ao rio que delimitava as terras dos Southford, deixou escapar um suspiro de alívio. Refreou Pirilampo e aproximou-se da carruagem mais próxima. Antes que desmontasse, um rapazinho de olhos escuros e cabeleira preta densa correu para lhe segurar a égua.

– Dou-te uma moeda se a levares a beber água ao rio... não deixes que beba demasiado.

Gwennor sorriu quando o rapaz se afastou, com Pirilampo atrás, e voltou-se para a idosa que estava sentada junto ao fogo e que olhava para ela com uma expressão grave.

– Portanto, vieste para que te leia o futuro, agora que o mal se apoderou da tua casa.

– Não, Jacquinita. Receio que saiba o que verias na minha mão – respondeu Gwen, com uma careta, e não estranhando que a cigana mais respeitada do grupo já soubesse da chegada do seu primo. – Vim pedir-te um favor.

A cigana indicou-lhe que se sentasse, fazendo soar as suas muitas pulseiras.

– Que favor?

– Parry e eu temos de sair imediatamente de Southford. No entanto, o meu primo não pode encontrar-nos. Quero pedir a Rémolo que nos deixe viajar na caravana, disfarçados de ciganos. Pagarei com dinheiro e jóias. Pedir-lhe-ás que me ajude?

A mulher tocou com o dedo numa ruga da sua pele corada.

– O teu primo quer fazer-te mal?

– Pretende casar-me com um amigo dele. Contudo, não é por isso que fugimos. Quer fechar Parry no sótão e nunca mais o deixar sair. Vocês melhor do que ninguém compreenderão o que isso significaria para o meu irmão.

A idosa assentiu.

– O teu irmão tem um dom. Um espírito assim não deve ser enjaulado. O teu pai era um bom homem. Todos os anos permitia-nos acampar nas suas terras. Este... – cuspiu para Southford Manor e depois benzeu-se. – Chamará depressa alguém para nos expulsar. Já disse aos meus. Portanto, vamos ao anoitecer. Falarei com Rémolo.

– Ao anoitecer! – exclamou Gwen, alarmada. – Se não quero ser vista, não poderei sair de casa antes da meia-noite. Por favor, diz a Rémolo que pagarei bem se esperar.

A idosa levantou-se e pôs o lenço de cores na cabeça.

– Assim o direi. Vem comigo.

Gwennor tirou a bolsinha de couro e estendeu-a.

– Leva-lhe isto. Diz-lhe que trarei mais vinte peças de ouro esta noite, quando viermos.

A idosa tirou-lhe a bolsa da mão.

– Dir-lhe-ei.

Gwennor seguiu Jacquinita, enquanto rogava a Deus que suavizasse o ânimo do líder dos ciganos. A decisão de Rémolo, o cigano bonito e bronzeado que liderava o acampamento com mão de ferro, seria definitiva e irrevogável.

Gwennor, que mal conhecia o dialecto romani, não conseguiu perceber a conversa que se desenrolou de seguida. A idosa ofereceu a bolsa de dinheiro e o líder dos ciganos aceitou-a, inclinando brevemente a cabeça para ela. Porém, quando Jacquinita falava há vários minutos, Rémolo começou a franzir o sobrolho e a abanar a cabeça com veemência.

Gwennor estava prestes a atirar-se aos seus pés quando, depois de outro discurso da idosa, Rémolo parou, pensativo e em seguida assentiu. A idosa executou uma reverência e voltou-se para Gwennor.

– Aceita levar-nos? – perguntou esta.

A idosa sorriu.

– Agradece-te pelas moedas de ouro. Todavia, diz que não quer levar uma carga tão pesada. Disse-lhe então que trabalharás para nós, que deitarás cartas e lerás a sorte aos camponeses que vêm ao acampamento quando pararmos. Aí, ele disse que para essas coisas já temos mulheres e crianças de sobra. No entanto, disse-lhe que Parry tinha curado o seu garanhão... e que a sua égua preferida está prestes a parir. Portanto deixa-vos vir em troca da ajuda do teu irmão e do dinheiro que lhe prometeste. Contudo, não quer esperar até à meia-noite.

A alegria inicial de Gwennor dissipou-se rapidamente.

– Não conseguimos sair antes! Ou, melhor dizendo, eu não consigo. Porém, Parry, sim. Se pagar a Rémolo o que prometi, levam Parry? Cuidarão do meu irmão? – a voz quebrou-se ao pensar que o irmão teria de ir sozinho.

A idosa aproximou-se e tocou-lhe na cara.

– Menina da minha alma, sabes que sim. No entanto, salvarás o teu irmão do perigo e ficarás?

Gwennor assentiu.

– O meu destino não me importa, depois acabarei por me lembrar de alguma coisa. Não conseguirei proteger Parry de Nigel se ficar.

– Tens um coração de lince, minha menina – disse a idosa, respeitosamente. – És assim desde que te conheci, quando ainda eras uma rapariguinha, valente, forte e decidida. Ah! Se fosses cigana, serias minha aprendiza. Não penses que te vou deixar ficar com esse diabo. Vem à meia-noite. O meu neto David... – apontou com a cabeça para o rapaz que segurava Pirilampo junto ao riacho, – ficará à tua espera para te levar até nós. Agora, vai com Deus, menina.

Gwennor abraçou-a.

– Obrigada, avó!

Jacquinita soltou-se, rindo-se suavemente.

– Vestirás umas saias e uma blusa. Depois irás pôr uns braceletes, uns brincos e um lenço, que te encobrirá esse cabelo preto. Então serás cigana, minha menina!