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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2001 Janet Justiss. Todos os direitos reservados.

UMA COQUETE INCORRIGÍVEL, Nº 191 - Setembro 2013

Título original: The Proper Wife

Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2009

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. as marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-3418-7

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

Um

 

O coronel lorde St. John Sandiford agarrou-se à amurada para resistir ao vento. Através da névoa, mal conseguia ver o contorno difuso da costa inglesa. O herói de guerra voltava finalmente para casa, pensou com uma careta irónica.

Um grito chamou a sua atenção e virou-se para ver o tenente Alexander Standish a aproximar-se, coxeando ainda mais devido ao balanço do navio. Uma grande onda foi contra o casco e quase fez com que caísse. Sinjin inclinou-se para ele com a mão estendida.

– Agarra-te, Alex – gritou contra o vento. Felizmente, o tenente aceitou a mão que lhe oferecia sem hesitar e juntos protegeram-se do vento.

– Obrigado, coronel – disse o jovem, ofegando pelo esforço. Sinjin observou-o atentamente, aliviado ao comprovar que o brilho dos seus olhos se devia à excitação e não à febre. – Parece que ainda tenho dificuldade em manter-me de pé.

– Não devias ter saído com este vento – disse Sinjin com um sorriso. – De que terá servido teres sobrevivido no campo de batalha e teres passado meses no hospital, se o vento te atirar ao mar a uma milha da costa?

O tenente devolveu-lhe o sorriso.

– Admito que foi uma imprudência, mas... Estou ansioso por chegar! Não esperava encontrá-lo aqui, coronel. Pensava que já tinha tido suficiente água e frio em Espanha. Deve estar tão impaciente como eu.

Os meses que passara às ordens diplomáticas do duque de Wellington impediram-no de confessar que era precisamente da impaciência que se respirava no convés que quisera fugir.

– Se estás assim tão impaciente para te arriscares a ser comida para peixes, é porque lady Barbara deve estar pessoalmente à tua espera no cais – disse, evitando a pergunta.

Um rubor cobriu as faces pálidas do soldado.

– Não, embora fosse as melhores boas-vindas que poderia receber. Oxalá continue à minha espera em Londres. Não houve nenhum compromisso formal antes de me ter alistado no regimento, e... – respirou fundo e engoliu em seco. – Talvez os seus pais queiram alguém melhor para ela. Alguém que esteja... inteiro.

Quantas coisas mudavam enquanto os soldados iam lutar e morrer no estrangeiro, pensou Sinjin. Aquele pensamento avivou as brasas de um ódio que três anos não tinham conseguido sufocar. Mais uma vez, teve de reprimir a primeira resposta que apareceu nos seus lábios.

– Tolices! – disse, dando uma palmada no ombro do jovem. – Que melhor homem para ela do que um dos heróis que conseguiu vencer Napoleão? Um herói rico, para além disso, se os rumores sobre a fortuna do teu pai forem verdadeiros. Podes sempre dizer-lhe que o cavalo levou com a pior parte...

O seu comentário fez com que o jovem se risse.

– Ainda consigo montar, graças a Deus. Seja qual for a decisão do pai de lady Barbara, considero-me muito mais sortudo do que a maioria.

Por um momento, ficaram em silêncio, pensando nos camaradas que tinham perdido a vida em Waterloo.

– O que me diz de si, coronel? Não há nenhuma dama à sua espera, impaciente, depois de passar um ano longe de casa?

A imagem de um rosto surgiu fugazmente na sua cabeça, porém, afastou-a imediatamente.

– Estive fora muito mais tempo – disse, voltando a evitar a resposta.

– Foi para Bruxelas antes do exército?

– Na verdade, nunca saí do continente. Depois de Toulouse, o duque foi nomeado embaixador na corte dos Bourbons e precisava de um séquito. Eu ofereci-me como voluntário e fiquei em Paris com a duquesa e o pessoal da embaixada, enquanto o velho Hookey assistia ao Congresso de Viena.

O jovem tenente emitiu um assobio.

– Deve ter sido uma tarefa árdua. Ouvi dizer que os franceses não gostavam dos partidários dos Bourbons em geral e dos ingleses em particular, enquanto Napoleão solicitava apoios para o seu regresso.

– Madame de Stael e outras que voltavam do exílio faziam o possível para nos distrair – disse Sinjin. Algumas das damas de companhia da duquesa tinham-no ajudado a esquecer tudo temporariamente com as suas seduções.

O tenente arqueou uma sobrancelha e sorriu.

– Ah, então foram os encantos das raparigas francesas que prolongaram a sua estadia... Mas suponho que terá sentido a falta da sua terra natal.

– Até ao último palmo dos meus acres hipotecados – respondeu Sinjin com ironia. As cartas que recebera de Jeffers apressavam-no a regressar para pôr tudo em ordem. Agora que a paz reinava e que o seu regimento regressava a casa, não podia continuar a fugir do seu dever por mais tempo.

Um dever que teria aceitado de bom grado se tivesse podido ter a sua amada junto dele. Sarah... O nome ecoou na sua mente como um suspiro.

– Ena, as coisas estão assim tão mal? – perguntou o tenente, abanando a cabeça. – Então, se não tem ninguém à sua espera, poderá encontrar uma noiva rica. Tenho a certeza de que qualquer nobre adoraria entregar a sua filha a alguém como o coronel – olhou para o coronel de cima a baixo. – Um oficial bonito e com uma folha de serviço impecável.

A ideia de se casar por dinheiro parecia-lhe tão odiosa que Sinjin apertou os dentes.

– Duvido que um velho soldado como eu, cheio de cicatrizes e com os bolsos vazios, possa conseguir alguém assim, mas farei o possível.

– Nesse caso, vejo-o na cidade para a temporada social. Se tiver algum problema antes de encontrar a sua herdeira... – o tenente pareceu incomodado, – não hesite em falar com o meu pai. Os rumores sobre a sua riqueza são verdadeiros e devo-lhe mais do que nunca...

– Não foi nada – interrompeu Sinjin. – Embora aprecie a tua oferta. Mas não me parece que seja necessário.

– Claro que não, mas... – de repente, assinalou a névoa. – Olhe! Vê?

Sinjin virou a cabeça para onde apontava. Através da névoa, via-se a forma de uma parede rochosa. As falésias de Dover.

Apesar de tudo, ficou fascinado com a imagem e uma faísca de emoção surgiu na rocha de gelo que uma vez fora o seu coração. Estava a regressar a uma propriedade arruinada e a uma mãe esbanjadora, uma realidade de que não podia fugir e que o obrigaria a sacrificar-se pela fortuna de uma noiva indesejada. Contudo, naquele momento teve um pressentimento de possibilidades ilimitadas. Talvez estivesse mais louco do que pensava.

 

 

Uma semana mais tarde, montado no último cavalo que lhe restava, Sinjin saiu dos escritórios do seu advogado em Londres para voltar para Westminster. Abrandou o passo ao passar diante do edifício. Nenhum dos soldados que montava guarda, esplêndidos com os seus casacos vermelhos e cordões dourados, podia suspeitar que, sob a sua aparência discreta, com um casaco castanho e umas calças de montar velhas, se escondia um oficial.

Um ex-oficial, pensou. Sentiu uma pontada de remorsos tal como no dia anterior, quando, depois de ter apresentado a sua demissão, despira pela última vez o casaco azul e o casaco do exército, ao qual se dedicara por inteiro durante os últimos seis anos.

Isso não significava que fosse sentir saudades da guerra, pensou, enquanto esporeava o seu cavalo. Qualquer atracção da vida militar morrera com a primeira morte que presenciara na batalha. Contudo, a camaradagem, a ligação criada entre os companheiros, a satisfação de cumprir com o seu dever... Sim, sentiria a falta de tudo aquilo.

Maldito idiota sentimental, recriminou-se com irritação. Depois de receber as noticias amargas do seu advogado, a decisão de vender fora a melhor. Não ia receber muito dinheiro, porém, mesmo assim, seria melhor do que nada. As cartas de Jeffers não tinham exagerado ao explicar-lhe a situação económica dramática... Muito pelo contrário. As coisas estavam muito pior do que imaginara.

Já vendera os seus outros cavalos, com a mesma sensação de dor que lhe provocaria a perda de um amigo. Apenas ficara com Valiant, o seu fiel companheiro, no entanto, a menos que tomasse as medidas que o seu advogado lhe dissera, muito em breve seria obrigado a renunciar a ele também.

A última das recomendações do seu advogado não era nenhuma surpresa. Tinha de encontrar uma noiva rica. O senhor Walters acrescentara com um pequeno sorriso o mesmo elogio que Alex lhe fizera no navio... Para um homem com o seu porte e linhagem, não seria difícil encontrar uma herdeira apropriada.

Para tal, concluíra dando uma olhadela ao traje andrajoso de Sinjin, pensava que o dinheiro poderia permitir um pequeno desembolso adiantado que permitisse a sua senhoria procurar roupa adequada para a temporada social.

Exibir-se como um troféu de pesca, pensou Sinjin amargamente. Sabia que, apesar de todos os seus receios, só assimilara a realidade nessa manhã. Tinha de se casar com uma herdeira rica e em breve.

Não era a primeira vez que considerava essa possibilidade desde que a morte do seu pai revelara o alcance da sua situação financeira. Contudo, rejeitara sempre a ideia com desagrado, esperando que o futuro lhe apresentasse uma solução alternativa para as suas dificuldades económicas.

No entanto, o senhor Walters demonstrara-lhe que o tempo para encontrar essa alternativa acabara. A não ser que quisesse perder o pouco que restava das terras dos seus antepassados, o visconde St. John Michael Peter Sandiford tinha de participar totalmente nos eventos sociais conhecidos como «o mercado matrimonial», o que significava que teria de fazer ornamento da sua linhagem com o mesmo descaramento com que uma prostituta se exibia junto do teatro de Haymarket.

Respirou fundo e engoliu em seco. Não era estranho que tivesse estado tão resistente a voltar a Inglaterra.

Porém, já se queixara o suficiente, como se fosse um recruta novato ao ouvir o primeiro tiro no campo de batalha. Tinha de seguir em frente e enfrentar a realidade.

Conseguiria passar pelos locais de St. James a caminho da modesta moradia que arrendara em North Audley Street, ou passar por Albany e visitar Alex. O seu jovem tenente, que tinha dinheiro e vontade para começar a temporada, poderia aconselhá-lo sobre as melhores lojas de roupas para cavalheiros. Sinjin nunca discriminava ninguém pela sua roupa, no entanto, até ele tinha de admitir que com a única roupa civil que possuía se assemelhava mais a uma rapaz de estábulos do que a um pretendente para uma daquelas raparigas arranjadas ostentosamente, cujas mãos perfumadas muito em breve teria de beijar. Sorriu ironicamente ao pensar na cara de uma delas se lhe apresentasse os seus serviços com a roupa que levava naquele momento.

Chegara a Piccadilly, porém, ainda não estava com humor para procurar companhia. Talvez uma galopada o ajudasse. Pelo menos, o ar de Hyde Park continuava a ser gratuito.

Dirigiu-se para oeste. Contudo, em vez de continuar por Piccadilly, misturou-se com os comerciantes que se dirigiam para o Shepherd’s Market. Continuou para norte, até que alcançou a tranquilidade de Curzon Street. Ao aproximar-se da bonita mansão de estilo georgiano junto do caminho, puxou as rédeas para parar o cavalo, sentindo como o seu coração acelerava.

Não era mais do que nostalgia, disse para si, provocada sem dúvida pelas mudanças tão radicais que a sua vida experimentara nos últimos dias. Permitir-se-ia uns minutos de melancolia e continuaria o seu caminho.

Desmontou, atou as rédeas de Valiant a um poste e aproximou-se da mansão em silêncio. Àquela hora da manhã, a maioria da aristocracia continuava deitada, porém, Sinjin sabia que Sarah já estaria a trabalhar em algum lugar da casa. Embora já não fosse a sua Sarah, a sua vizinha, a sua amiga e a sua confidente, companheira e instigadora das suas aventuras infantis. A rapariga que lhe roubara o coração ao transformar-se numa mulher. A dama que, desde há três anos e três meses, era a esposa do marquês de Englemere.

Sentiu um aperto no pouco que restava do seu coração.

A sua doce Sarah... O seu único amor.

Sabia que se encontrava bem. Depois de se reunir com o seu regimento, três anos antes, recusara-se a abrir as duas primeiras cartas de Sarah. No entanto, finalmente sucumbira à necessidade de preservar a amizade, e cada nova carta que lhe chegava com notícias de Londres transformara-se no mais interessante da sua vida aborrecida e rotineira. Conservara todas, incluindo as que recebera três semanas antes, atadas num monte que repousava junto da sua cama em North Audley Street. Todas menos uma.

Um ruído na porta principal chamou a sua atenção. Devia afastar-se dali antes que alguém saísse e o confundisse com um mendigo. Porém, antes que conseguisse voltar a montar, um cavalo rodeou a esquina a grande velocidade e lançou-se a galope para ele. Várias aias gritaram e afastaram-se, esquecendo os seus panos e espanadores. Sinjin também se viu obrigado a recuar, ao mesmo tempo que o cavaleiro puxava as rédeas para parar o garanhão preto.

Era uma mulher numa sela de amazona. Sinjin levantou o olhar e contemplou o bonito perfil feminino. A perfeição dos seus traços clássicos era o tipo de beleza que inspirava adoração nos homens e inveja nas mulheres menos agraciadas. Umas pestanas longas e frisadas emolduravam os olhos da deusa, que, com uma mão enluvada, acarinhava o pescoço do cavalo.

A boca de Sinjin esboçou uma careta de desgosto ao reparar noutros complementos de moda que, pela sua experiência com as contas da sua mãe, sabia que representavam luxos desnecessários. A lã extrafina do seu fato italiano, que devia custar, pelo menos, um soberano. O chapéu deslumbrante de veludo e penas de avestruz. A pele de primeira qualidade das botas de montar. O corpete imitava o casaco regulamentar dos militares, porém, com o que custava a renda dourada que o enfeitava poderia alimentar-se um pelotão durante um ano.

E o cavalo... Depois de ter suportado o exame vergonhoso a que submetiam os seus cavalos para o leilão, estimava que o preço daquele exemplar superava as quinhentas libras. Não era o cavalo mais apropriado para uma dama, como acabava de demonstrar a corrida louca pelas ruas de Londres.

Sinjin sentiu-se invadido por uma fúria cega. Em que estivera a pensar o pai daquela menina mimada para comprar um cavalo semelhante? Como se atrevia aquela menina a vestir um uniforme ao qual Sinjin tivera de renunciar com grande pesar e que muitos soldados valentes vestiam com orgulho para lutar e morrer na batalha? Pensou em Uxbridge, que perdera uma perna. Em Alastair, que perdera um braço. Nas filas dizimadas do regimento. Na brigada de infantaria, que resistira até ao último homem no bosque de St. Jean.

Enquanto os seus companheiros eram massacrados ou mutilados, aquela jovem passava as manhãs na cama, as tardes a polir-se à frente do espelho e as noites a dançar até ao amanhecer.

Se não estivesse tão furioso, talvez tivesse ficado impressionado com a beleza do seu rosto, com o brilho dos olhos verde-esmeralda que olhavam para ele e com a perfeição dos seus lábios carnudos que se abriam para falar.

– Tu! Ajuda-me a descer e leva o meu cavalo para o estábulo.

Distraído brevemente pelo mordomo que, nesse momento, abria a porta de casa de Sarah, Sinjin demorou uns segundos a aperceber-se de que a deusa estava a dirigir-se a ele.

– Faça-o você, menina – disse.

Demasiado exacerbado para pensar, virou-se e dirigiu-se para Valiant. Montou agilmente e afastou-se para o parque.

 

 

Boquiaberta, Clarissa Beaumont observou como o homem alto e loiro se afastava sem olhar para trás. Era um comerciante, um agricultor... ou talvez um cavalheiro? Fosse o que fosse, não era o criado que ela pensara. Porém, com aquele traje, e tendo em conta que havia sempre um rapaz à espera de Clarissa depois do seu passeio matinal a cavalo, era lógico que se tivesse enganado.

O seu olho de perita amazona apreciou a qualidade dos arreios e a elegância com que o homem controlava o cavalo. Sim, o mais provável era que fosse um cavalheiro... O cavalheiro mais grosseiro e pior vestido que Clarissa vira na sua vida.

Era também o menos impressionável, concluiu com um sorriso irónico. A sua beleza não provocara nele a reacção habitual depois de ser a rainha indiscutível de quatro temporadas seguidas.

Tinha de admitir que despertara o seu interesse feminino. Se realmente fosse um cavalheiro e voltassem a encontrar-se, seria uma experiência muito interessante.

Viu Glendenning à sua espera à porta e cumprimentou-o com a mão, enquanto uma rapaz se aproximava para segurar nas rédeas de Diabo e ajudá-la a desmontar. Antes de se dirigir para a casa, deu uma última palmada no focinho do garanhão.

– Dá-lhe uma dose extra de ração, Stebbins. Tivemos um passeio fantástico. E pensar que quase o deixei nas mãos de um desconhecido...

Uma boca com uma expressão severa e um brilho de olhos azuis fora tudo o que vira do homem, pensou, enquanto subia os degraus. E uma cicatriz sobre o olho direito. Um homem de rosto atraente. Um personagem atormentado e misterioso que parecia saído dos romances de Maria Edgeworth.

O risinho inicial transformou-se num gemido. Meu Deus, como a sua vida devia ser aborrecida para chegar ao ponto de fantasiar com um estranho. Não podia ser um cavalheiro. Aquele homem não era mais do que um desgraçado sem um tostão com uma família para sustentar. Os seus caminhos não voltariam a cruzar-se e ela esquecê-lo-ia.

Surpreendentemente, aquela ideia provocou-lhe uma tristeza profunda.

Dois

 

Sua senhoria, Sarah Stanhope, marquesa de Englemere, aguardava-a na sala, comunicou-lhe Glendenning com uma vénia. Contudo, antes que Clarissa pudesse cumprimentar a sua melhor amiga, um projéctil atingiu-a.

– Clare! Clare! Vamos jogar aos soldados!

– Meu Deus, Aubrey, vais atirá-la ao chão! – repreendeu a sua mãe. – Os jovens cavalheiros que não sabem cumprimentar correctamente uma dama serão fechados na sala de aula até que aprendam a melhorar as suas maneiras.

– Não é necessário. Não consegue derrubar-me assim tão facilmente – disse Clarissa, enquanto se ajoelhava para abraçar o seu afilhado. – Estou muito contente por voltar a ver-te, querido, e vamos jogar aos soldados assim que eu beber o chá – prometeu, acariciando-lhe o cabelo preto e encaracolado.

Lady Englemere abanou a cabeça.

– A sério, Clare, como vou educá-lo para que se comporte devidamente se tu estás sempre a apoiá-lo?

– Ora, Sarah. Terá tempo suficiente para se aborrecer com as boas maneiras. Deixa que se divirta enquanto pode.

– És pior do que ele.

– Certamente. Não fui sempre? – sem se importar com o seu vestido novo, sentou-se no chão e sentou o seu afilhado no seu colo. – Bom, general, onde está o meu chá?

– Tem cuidado com o seu vestido – avisou a marquesa. – Aubrey já acabou de tomar o pequeno-almoço e certamente tem as mãos sujas.

– Ora, o que são umas manchas entre soldados? Não é, meu general?

Lady Englemere abanou a cabeça.

– Claro! Limpar o vestido será problema da tua aia.

– Foi para isso que contratei uma – disse Clarissa com uma gargalhada.

O pequeno estava a seguir o traçado dos cordões com um dedo certamente sujo. Levantou o rosto com um sorriso radiante e virou-se para Sarah.

– Clare é um soldado! Vês, mamã? Clare é um soldado.

– Rapaz inteligente. Foi por isso que encomendei este vestido. Bom, quais é que queres?

– Os ingleses!

– Excelente. Não achas que seria um magnífico soldado, Sarah? É uma pena que Wellington não contasse com os seus serviços.

Lady Englemere tremeu.

– Por uma vez, fico contente por ainda ser pequeno.

– Quase me esquecia – disse Clarissa, levantando o rapaz do seu colo. – Abre a minha bolsa e vê o que te trouxe.

– Soldados! – exclamou o menino, desatando rapidamente os nós da bolsa para tirar os soldados um a um.

– Oh, Clare, mais soldados não – queixou-se lady Englemere. – Já lhe compraste metade de um regimento.

– Pois então só falta a outra metade.

– Estás tão fascinada com os soldados como Aubrey.

– Porque não? Pelo menos, os soldados viajaram pelo mundo, fazendo alguma coisa útil e grandiosa – pegou em duas das figuras de chumbo. – Olha, Aubrey. Estes são prussianos e este velho é o general Bluncher.

– Aubrey, leva isso para o quarto para ao pé dos outros. Poderás brincar quando a tia Clare acabar o chá.

– Sim, mamã – respondeu o menino, levantando-se obedientemente. – Obrigado, tia Clare – fez uma vénia solene e saiu para a porta com os soldados. – Despacha-te – ordenou à sua tia.

– Tens um filho formidável – disse Clarissa, seguindo-o afectuosamente com o olhar.

– Tão travesso como a sua madrinha.

– Nada disso – replicou Clarissa, levantando-se. Sacudiu o vestido e sentou-se ao lado de Sarah no sofá. – Transformei-me numa mulher aborrecida e respeitável.

Lady Englemere suspirou.

– Certamente... Vais aceitar a proposta de Mountclare? Há três meses que desprezas os seus cuidados. Englemere diz que as apostas nos clubes estão a seu favor.

Clarissa fez uma careta enquanto mexia o chá.

– A sério? Parece que terei de o rejeitar, pois sempre preferi as opções menos prováveis – uma mistura familiar de irritação e desassossego surgiu no seu interior. – Oh, não sei! É divertido, sim, e muito leal também. Mas como poderia casar-me com um homem que veste coletes amarelos?

– Esse não foi o motivo por que rejeitaste Wexley?

– Wexley? Os seus coletes eram vermelhos. Além disso, ao contrário de Mountclare, cuja conversa pode ter um mínimo de sentido às vezes, Wexley não tem um pensamento mais profundo do que o corte do seu casaco.

– Mas, em algum momento, terás de te casar com alguém. Já rejeitaste a maioria dos solteiros de Londres. O visconde Albright e lorde Manton na última temporada, e...

– Por favor! – interrompeu Clarissa. – Temos de falar de uma coisa tão feia como o casamento? – sorriu maliciosamente à sua amiga. – Alguma vez te arrependeste de te ter casado com alguém tão aborrecido como Englemere?

– O meu marido é o homem mais inteligente e brilhante da terra, embora nunca possamos estar de acordo nisto – respondeu Sarah calmamente. – E tu? Alguma vez te arrependeste de o ter deixado plantado?

– Nem por um segundo. Nisso podemos estar de acordo.

– Mas o casamento tem outros estímulos... Como partilhar o calor da cama numa noite fria de Inverno – Sarah olhou para a sua amiga com uma expressão de afecto e preocupação. – És uma mulher muito apaixonada. Seria uma pena que tu te negasses esses prazeres.

Clarissa tinha de admitir que o desejo insatisfeito era parte da sua inquietação e impaciência.

– Não é preciso casar-me para aproveitar esses prazeres – disse. – Os homens não o fazem.

Sarah não pareceu ficar escandalizada pelo comentário.

– É verdade. Mas não te esqueças, minha querida, que as mulheres têm de suportar as consequências da paixão e os homens não. Embora tenha a certeza de que também desfrutarias muito dessas consequências. És tão infantil que serias uma mãe fantástica.

– Isso é um insulto?

– É um elogio, acredita – garantiu Sarah com um sorriso.

– Os meninos são um estímulo muito poderoso, é verdade. Mas, a menos que se queira provocar um escândalo, é preciso pagar um preço por eles... O inevitável marido.

Sarah inclinou a cabeça e observou a sua amiga.

– És suficientemente rica para viver sem um marido, mas o que será de ti se te empenhares nessa atitude? Já te encarregaste dos assuntos da tua casa, mas tenho a impressão de que não estás satisfeita.

– A minha mãe pode ser encantadora, mas não é muito inteligente. Controlar as tarefas que estive a desempenhar desde pequena foi um pequeno desafio ao princípio, mas já está tudo resolvido. Se o casamento não fosse para toda a vida, talvez me sentisse mais tentada. Mas ainda tenho de encontrar um homem que não se transforme num tonto ao fim de duas semanas. Se voltar a receber uma ode aos meus olhos ou aos meus lábios, juro-te que farei com que o seu autor a engula e sairei da sala a gritar – a necessidade permanente e urgente de fazer alguma coisa fez com que se levantasse e caminhasse para a janela. – Quantos mais homens conheço, pior é a opinião que tenho deles. Não consigo entender porque, apesar de não me comportar como uma dama delicada e cortês, continuam a adorar-me. Por muito temperamental ou quixotesca que possa ser, eles empenham-se em satisfazer os meus supostos desejos.

Sarah limitou-se a arquear uma sobrancelha e Clarissa não teve outro remédio senão rir-se.

– Já sei o que pensas de mim e tens razão. Ao princípio, era lisonjeador, até emocionante, mas há muito tempo que comecei a suspeitar que a maioria deles tem tão pouco cérebro como a minha mãe. Só reparam no aspecto e nenhum se preocupa em olhar para além da pele de marfim e os olhos esmeralda. Ninguém se importa...

O tom de desespero devia ter sido mais revelador do que pretendia, porque Sarah se aproximou para a abraçar.

– Eu acho que a mulher que se esconde atrás da máscara tem uma personalidade mais forte, mais pura e ainda mais bonita do que o seu rosto.

Clarissa devolveu-lhe o abraço com os olhos cheios de lágrimas.

– Tendo em conta que estás sempre a repreender-me, esse elogio é muito importante para mim. Tu és a única pessoa que conheço... excepto outra – acrescentou enquanto pousava o olhar no retrato de lorde Englemere sobre a lareira, – que se arriscou a tentar conter-me.

– E vivi para contar a história.

– Só porque às vezes me falha a pontaria – disse Clarissa e ambas desataram a rir-se ao recordar os vasos e jarras que frequentemente tinham servido para descarregar a sua frustração.

Clarissa soltou a sua amiga e caminhou para a porta.

– Mas, mesmo assim, morro de aborrecimento. Recuso-me a aceitar que a vida não me ofereça outra coisa senão esta interminável ronda de festas aborrecidas e gente aborrecida. Apesar das minhas boas intenções, se não me acontecer rapidamente alguma coisa mais emocionante, serei obrigada a fazer alguma coisa realmente escandalosa.

A visão repentina de uns olhos azuis e uns lábios apertados numa expressão séria apareceu na sua mente.

– Como fugir com um homem casado e sem título.

Sarah riu-se.

– Enlouquecerias o homem em menos de uma semana.

– É possível – admitiu ela com um sorriso. – Mas, por agora, tenho de ir brincar com os soldados.

Sarah ficou séria.

– És muito boa com Aubrey. Não achas que o casamento poderia valer a pena, para ter um filho assim?

Um desejo agridoce invadiu Clarissa. Ter um filho próprio, um filho para encher de mimos, cuidados e atenções, e a quem poder amar com essa paixão caótica que se revolvia no seu interior sem encontrar saída.

Esboçou a Sarah um último sorriso da porta.

– Até descobrir um homem que valha metade do que o teu filho, conformar-me-ei a pedir-te Aubrey emprestado.

 

 

Naquela noite, Sinjin bebia um copo de vinho enquanto o seu Jeffers, que acabava de regressar de Sandiford Court, desembalava as compras que fizera naquela tarde. Parecia que os comerciantes ainda não conheciam a situação precária do visconde, pois tinham tentando convencer Jeffers a adquirir muitas mais roupas do que o seu senhor lhe pedira. Embora, segundo Jeffers, tenha sido a presença alegre de Alex que inspirara tanta cortesia. Os donos dos estabelecimentos a que Alex o levara deviam ter pensado que um amigo do rico lorde Standish não podia ter nenhum problema de dinheiro. Sinjin não conseguiu conter uma gargalhada ao recordar as contas que agora repousavam na gaveta da sua secretária.

Jeffers olhou para ele, enquanto dobrava um colete branco de brocado.

– Sim, coronel... Não é grande coisa se o compararmos com o uniforme do regimento.

– Já não sou coronel, Jeffers. Suponho que ambos teremos de nos habituar às cores preto, bege e verde.

– Espero aprender a dirigir-me a si como «milorde», mas, para mim, será sempre coronel. Os coletes podem mudar o seu aspecto, mas nunca será um desses estúpidos dandis, graças a Deus.

Sinjin tremeu ao recordar os homens que vira em Bond Street.

– Espero que não. Mas agora temos de ter outra batalha. Walters deu-me dois meses, no máximo três, para encontrar uma herdeira rica que possa salvar-nos. Caso contrário, terei de vender muito mais do que a minha dignidade.

Jeffers pôs o colete dobrado no armário e virou-se para o seu senhor com um suspiro.

– É humilhante ter de depender de uma mulher, mas é o melhor oficial que servi. Se houver um homem capaz de encontrar uma mulher que mereça a pena, é você.

Sinjin voltou a rir-se.

– Acho que é ao contrário, Jeffers. Tenho de encontrar uma mulher para quem eu mereça a pena. De pouco serve ter um título com o bolso vazio.

Jeffers suspirou.

– Não sei como pensam as mulheres, muito menos as da burguesia, mas se uma mulher não pode ver que você vale cem vezes mais do que os que se pavoneiam pelas ruas de Lunnon, então é porque não tem cérebro.

– Sim, sem dúvida, veria a minha proposta como uma honra para ela – afirmou Sinjin com sarcasmo.

Jeffers endireitou-se como se estivesse num desfile e olhou para Sinjin com uma expressão ofendida.

– Um coronel do décimo regimento... – parou quando Sinjin fez um gesto de impaciência com a mão.

– Logo veremos – interrompeu Sinjin, fazendo um gesto de impaciência com a mão. – Se já acabaste com a roupa, a senhora Webster vai servir o jantar na cozinha. Comemos tanto cordeiro frio que uma refeição quente será maravilhosa.

– Sim, coronel – disse Jeffers, fazendo a saudação militar com um sorriso, e saiu do quarto antes que Sinjin pudesse protestar.

Sinjin abanou a cabeça e acomodou-se com o copo de vinho numa cadeira de baloiço. Um homem como ele, que dormira à chuva sobre a terra gelada, que se considerara sortudo de poder comer um pedaço de pão duro e uma tigela de sopa aguada, que vira os seus camaradas a explodir em pedaços, não teria facilidade em encontrar uma dama que, segundo Jeffers, «merecesse a pena». Era igualmente improvável que uma dama pertencente à alta sociedade, que antepunha o aspecto ao interior e a riqueza ao carácter, pudesse sentir-se atraída por um homem que, cordialmente, desprezava esse mundo tão frívolo e superficial.

Um mundo de vícios que arrastara o seu pai à ruína, deixando-o à beira da miséria.

Pensou na jovem aristocrata que vira naquela manhã e voltou a franzir os lábios. Era tão bonita como a sua mãe, que sempre considerara Sarah demasiado insípida para o seu único filho. Uma rapariga presunçosa e altiva, habituada a comandar um esquadrão de rapazes, lacaios, mordomos e aias. Quando se casasse, venderia a sua face de porcelana para controlar o dinheiro do seu desventurado marido, e a sua única função seria criar os seus filhos e dirigir a casa. A sua vida social limitar-se-ia a uma interminável sucessão de festas e eventos onde exibir as suas compras. Olharia com desprezo para aqueles de menor patente social como Jeffers, que Sinjin considerava mais um amigo do que um criado depois de seis anos de campanhas militares.

O preço para salvar a sua casa era condenar-se a uma vida semelhante e trocar as penúrias económicas por outro tipo de sofrimento?

Não, decidiu, enquanto se levantava para encher o copo. Poderia casar-se com uma mulher que não amasse, porém, pelo menos, tinha de ser uma mulher que conseguisse respeitar. Se Jeffers tinha razão ao afirmar que as mulheres dignas de respeito não abundavam na aristocracia, então teria de procurar noutro lado.

Talvez na classe média? A ideia tinha um certo interesse. Dois dos seus homens, o sargento Trapper e o tenente Fitzwilliams, ambos agricultores, tinham levado as suas esposas para Espanha, e eram as mulheres mais valentes e competentes que Sinjin conhecera. Porque não escolher uma mulher assim como esposa? Não podia casar-se com a filha de um simples advogado, naturalmente, contudo, talvez houvesse algum capitão entre os comerciantes, desejoso de garantir as vantagens sociais da sua filha, casando-a com um membro da alta sociedade. Um homem que, tal como Sinjin, tivesse conhecido os horrores da guerra e tivesse seguido em frente com o seu próprio esforço. A filha de um homem semelhante valorizaria a personalidade do seu marido muito mais do que a sua situação económica, deixaria o carácter folgazão, esbanjador e egocêntrico próprio da aristocracia e não recusaria o trabalho físico.

Sim, procuraria uma mulher assim e nenhuma outra.

A determinação ficou arraigada na sua mente, como a certeza que sempre sentira ao tomar a melhor decisão no campo de batalha e, pela primeira vez desde que chegara a Dover, sentiu-se mais animado.

– A uma noiva sensata de classe alta – brindou e bebeu de um só gole.

Nesse momento, bateram à porta. Certamente seria Alex, que vinha convidá-lo para o seu clube. Sinjin nunca permanecera em Londres tempo suficiente para se unir a um, no entanto, Ponsonby, Wetherford e outros dos seus companheiros já tinham regressado de Paris. Seria agradável voltar a vê-los.

– Entra, Alex – disse em voz alta. – Vou servir-te uma bebida.

Levantou o olhar para cumprimentar o seu convidado, enquanto agarrava na garrafa e num copo, e o sorriso desapareceu dos seus lábios ao encontrar-se cara a cara com Nicholas Stanhope, marquês de Englemere, o marido de Sarah.

Ao fim de uns segundos, recuperou a compostura.

– Englemere, que surpresa. Entra, por favor. Ainda não estou instalado, mas posso oferecer-te um copo de vinho – indicou uma cadeira ao marquês.

– Obrigado – respondeu Englemere, sentando-se e aceitando o copo. – Descobri pelos meus contactos que tinhas voltado. Glendenning viu-te esta manhã na rua.

– Deve ter uma vista de falcão. Foram os mesmos contactos que te deram a minha morada? – perguntou Sinjin, surpreendido pela habilidade de Englemere para o encontrar. – É uma proeza da tua parte.

– Como tu mesmo me disseste uma vez, as fontes podem ser muito úteis. Portanto deixaste o exército... Devo felicitar-te?

Sinjin sorriu ironicamente.

– Ainda não sei. A mudança é demasiado grande.

O marquês bebeu um gole de vinho e Sinjin soube que estava a recordar outra visita noutra sala, três anos antes.

– É muito amável por vires dar-me as boas-vindas tão rápido, mas suponho que os motivos da tua visita são outros...

O seu convidado sorriu.

– Sempre directo ao assunto. Certamente recordas a nossa última conversa, quando disseste que os nossos assuntos ficariam «pendentes» até Bonaparte ser derrotado.

Como esses «assuntos» se referiam à fuga de Sinjin com a mulher de Englemere, não era difícil supor o que o marquês queria resolver.

Quando Sarah lhe escrevera para lhe contar a sua situação dramática, Sinjin mexera céu e terra para conseguir uma licença e regressar de Espanha para salvar Sarah do casamento que a sua família lhe impunha. Infelizmente, chegara demasiado tarde e, desde então, a sensação de perda e angústia não o abandonara.

No entanto, a situação mudara. Deveria contar a Englemere os seus planos para se casar com uma herdeira rica e dedicar todas as suas forças a salvar a sua casa. Porém, embora já tivesse aceitado... com uma dor que o acompanharia para sempre, que Sarah amava o homem com quem fora obrigada a casar-se, o seu lado mais perverso não permitia que garantisse a Englemere que a esquecera.

Bebeu um longo gole de vinho antes de responder.

– Tens boa memória.

– Cada uma das tuas palavras ficou gravada na minha cabeça – disse Englemere com dureza.

– Na minha também.

– Por isso, podes entender que volte a perguntar-te quais são as tuas intenções com a minha esposa. Está bem, na verdade, certamente já sabes.

– Sim, recebi a sua última carta há algumas semanas – respondeu Sinjin.

– Pensei que era melhor permitir a correspondência entre vocês. Ao fim e ao cabo, tu és o seu mais velho... amigo – pronunciou a última palavra com uma ênfase especial.

– Achas que não me teria escrito se o tivesses proibido?

– Acredito. Tem um forte sentido do dever, como sabes. Mas teria sido muito triste para ela romper todo o contacto contigo e eu não queria que fosse infeliz. A felicidade da minha esposa está acima de tudo.

– É claro.

– Por isso pensei que o melhor seria ver-te antes que Sarah descubra que regressaste e descobrir quais são os teus... planos.

– Isso dependerá de Sarah.

O marquês lançou-lhe um olhar frio.

– Uma vez disseste que a amavas e que querias fazê-la feliz.

– Sempre a amei.

A expressão de Englemere suavizou-se.

– É uma jóia sem igual. Confesso que agora te entendo melhor do que há três anos. Ganhar o amor de Sarah e depois veres-te obrigado a abandoná-la deve ter sido uma tarefa quase impossível. Mas, assim o exigiam as circunstâncias, e todos temos de o aceitar. Ela é feliz, Sandiford. A minha intenção é que continue a sê-lo. O seu... estado volta a ser muito delicado.

A fúria contida que Sinjin nunca conseguira sufocar impediu-o de responder. Odiava os pais de Sarah e a sua própria mãe, cuja insistência para que cumprisse com o seu dever e se casasse com uma herdeira o levara para o exército, afastando-o tanto de Sarah que não conseguira regressar a tempo para impedir que se casasse com outro homem. Odiava a expressão compassiva de Englemere ao insinuar que era a ele que Sarah amava agora. Odiava a imagem de outro homem a abraçá-la, tocando-lhe, fazendo amor com ela... Englemere, que finalmente tinha tudo o que sempre desejara.

Sinjin apertou os punhos e respirou fundo, tentando reprimir o desejo selvagem de bater naquele rosto bonito e aristocrático.

Quando o marquês voltou a falar, fê-lo com um tom compassivo mais do que triunfal.

– Podes tentar bater-me, se quiseres. Eu sentiria o mesmo se estivesse no teu lugar.

– Ama-la? – foi tudo o que conseguiu perguntar.

– Com toda a minha alma – respondeu Englemere. – A julgar pela tua reacção, vejo que tu também continuas a amá-la. Convido-te a vir a minha casa e assim poderás ver por ti mesmo que está bem. Se desejas mesmo a sua felicidade, ficarás descansado. Sarah gostaria que pudéssemos ser amigos.

Sinjin emitiu um som abafado e Englemere assentiu.

– Talvez seja pedir demasiado – admitiu. – Mas, segundo o que Sarah e outros contam de ti, sei que és um cavalheiro honrado. Foi por isso que vim ver-te e é por isso que te convido a vir a minha casa – voltou a adoptar uma expressão muito séria e olhou fixamente para Sinjin. – Mas garanto-te uma coisa. Sejam quais forem as tuas conclusões, protegerei o que é meu.

Como homem honrado, devia dar a Englemere as garantias que fora procurar, que Sinjin aceitava o seu casamento e renunciava a Sarah. Porém, o aperto que sentia no peito impedia-o de articular as palavras.

Englemere esvaziou o seu copo e deixou-o na mesa.

– Obrigado pelo vinho. Sarah recebe as visitas à tarde. Não demorará a ouvir os rumores de que o regimento regressou, portanto espero ver-te em breve.

Sinjin levantou-se ao mesmo tempo que o seu convidado e acompanhou-o à porta.

– Englemere.

O marquês estendeu a mão e Sinjin obrigou-se a apertá-la.

– Bem-vindo a casa, coronel.

Muito depois de o marquês ter saído, e por muito que tentasse convencer-se de que o superara enquanto tentava controlar o tremor das suas mãos e sufocar a fúria que sentia, Sinjin teve de admitir que, embora tivesse assimilado o casamento de Sarah, não podia aceitar a ideia de que outro homem a possuísse, nem que aquela rapariga que, na noite antes de ter partido com o exército, lhe cobrira o rosto de beijos num celeiro, jurando-lhe amor eterno, se casara finalmente com Englemere.

Fora obrigada a fazê-lo e ele devia estar agradecido de que, pelo menos, o tivesse feito com um homem como o marquês.

Encheu outro copo de vinho com mãos trémulas e aproximou-se da janela para contemplar o céu cinzento de Londres.

Seis anos. Seis anos em que ele sofrera todo o tipo de penúrias: fome e sede, o calor infernal do Verão espanhol e os duros Invernos dos Pirenéus, feridas de guerra e a angústia de ver os seus companheiros a morrer no campo de batalha.

Estava na hora de acabar com um sonho nascido nos dias tranquilos de um Verão distante.

Porém, antes voltaria a vê-la.