Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.
Núñez de Balboa, 56
28001 Madrid
© 2006 Janet Justiss
© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.
Senhora do seu destino, n.º 209 - Fevereiro 2014
Título original: The Untamed Heiress
Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.
Publicado em português em 2010
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), feitos ou situações são pura coincidência.
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Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.
I.S.B.N.: 978-84-687-5032-3
Editor responsável: Luis Pugni
Conversão ebook: MT Color & Diseño
O vento soprava, embaraçando o seu cabelo preto e atirando madeixas para os seus olhos enquanto, atrás dela, o mar embatia contra as rochas, desfazendo-se depois em espuma. Helena Lambarth continuava a olhar para terra, para os dois trabalhadores que cavavam na terra à sombra das montanhas.
A sepultura estava quase pronta.
A sua euforia elevou-se como as gaivotas nas rajadas de vento salgado e uma gargalhada impossível de conter escapou da sua garganta.
Estava morto. Realmente morto. Finalmente, era livre.
Embora soubesse que qualquer som teria ficado contido pela cacofonia das ondas e das gaivotas, um dos trabalhadores fez uma pausa, olhou para ela e, com um braço estendido, indicou a sua presença ao outro. O homem benzeu-se com espanto e, com um gesto, indicou ao seu companheiro que continuasse a cavar.
Achariam que se tratava de um fantasma ou talvez se lembrassem dela naquela manhã há nove anos em que conseguira fugir do castelo Lambarth e chegar até à aldeia, onde um grupo de homens, ignorando as suas súplicas, a devolvera ao seu pai. Pensariam que era louca?
Por um instante, ficou presa na lembrança: descalça e a chorar, rodeada por um círculo de aldeãos que murmuravam entre eles sem pararem de olhar para a sua roupa rasgada, a sua cara suja e o seu cabelo embaraçado.
– Pobrezinha. Que pena...
– O seu pai diz que é louca, a pobre...
– É culpa da sua mãe. Por se ir embora daquele modo...
Helena fez uma careta parecida com um sorriso. As mentiras do seu pai já nunca mais poderiam magoá-la. Naquele mesmo dia, poderia abandonar aquele lugar maldito e procurar a mãe de cujo lado a tinham arrancado exactamente quando iam abandonar juntas as terras do seu pai. A mãe que nunca deixara de a amar. Tinha a certeza.
Um movimento ao longe devolveu-a ao presente. Os homens tinham parado de cavar e a comitiva do enterro saíra do castelo pelo caminho estreito de terra que conduzia ao cemitério, um lugar cheio de relva e abandono.
Sentiu um aperto no coração quando o seu olhar parou no monte de terra próximo do muro. A sua ocupante era uma intrusa na morte como fora em vida. Se não fosse por Sally, a louca, a velha curandeira e eremita que falecera há dois meses, não teria conseguido sobreviver ao seu cativeiro.
Ter-se-ia alegrado por ela? Embora a idosa murmurasse incongruências na maior parte do tempo, nos seus ocasionais momentos de lucidez mostrava uma percepção aguda da realidade. Tal como alguns aldeãos que entravam no bosque à procura da sua ajuda quando o médico da vila não conseguia curar as suas doenças, Helena também apreciava o talento da mulher como curandeira.
Embora os outros achassem que a velha bruxa possuía poderes escuros e a evitassem, razão por que o seu próprio pai, sempre covarde, deixara a mulher viver nas suas terras, Helena não sabia de uma só vez que tivesse usado a sua sabedoria senão para curar e socorrer os seus semelhantes.
Voltou a sentir dor. Demente ou não, Sally fora a sua única amiga e sentia saudades dela.
Respirou fundo. Com a morte do seu pai, esperava que a patrulha que contratara para vigiar o perímetro das terras de Lambarth também tivesse desaparecido. Mas não importava se encontrasse resistência armada ou não; só a sua própria morte a reteria mais uma noite naquele castelo.
O cortejo fúnebre entrou no cemitério. Dois agricultores servos do seu pai carregavam o caixão, seguidos por um homem cuja vestimenta preta o identificava como o vigário, e Holmes, o meirinho do seu pai.
Visto que não esperava mais ninguém, Helena surpreendeu-se ao encontrar mais uma pessoa atrás do caixão. Era um homem que nunca vira.
O que mais lhe chamou a atenção nele foi o seu estranho comportamento. O clérigo mexia os lábios, mantendo o olhar fixo num breviário, mas o homem olhava à sua volta, examinando todos os cantos do cemitério abandonado, como se procurasse alguma coisa.
Ou alguém. Um instante depois, os seus olhares encontraram-se e Helena, num gesto desafiante, não desviou o dela. O homem, depois de olhar para ela durante alguns segundos, cumprimentou-a.
Ela retribuiu o cumprimento e o estranho sorriu antes de se virar para o sacerdote.
Helena recordou, de repente, uma coisa que Sally lhe dissera pouco antes de morrer e a que não prestara atenção, pensando que se tratava de outra das suas maluquices. Dissera-lhe que a sua mãe enviara alguém para a vigiar. Alguém que estava há anos na aldeia à espera que o seu pai adoecesse ou que ficasse incapacitado o suficiente para poder aproximar-se dela sem correr perigo.
Seria verdade? Seria aquele homem?
Não podia deixar-se levar pela imaginação, contudo, visto que tencionava seguir a sua própria direcção, também não lhe faria nenhum mal segui-lo até à vila, desde que não houvessem guardas armados nos seus postos para a impedirem de sair.
O sermão acabou e o sacerdote esperou que os dois integrantes do cortejo atirassem um punhado de terra sobre o caixão para se ir embora do cemitério. Sem voltar a olhar para ela, o desconhecido seguiu-o, deixando os dois peões a acabarem o trabalho.
Do promontório rochoso em que estava, Helena viu o grupo dispersar-se e cruzou os braços sobre o vestido velho. Visto que já há muito tempo que se tornara imune ao vento frio e húmido da costa, o calafrio que sentiu devia ter sido de esperança.
– Lamento imenso, querida.
Como se as suas palavras carecessem de significado, Helena ficou a olhar para o rosto amável do senhor Pendenning, o advogado da sua mãe, do outro lado da mesa. Porém, na verdade, já não era o seu advogado, porque a sua mãe morrera.
O homem que vira no enterro do seu pai, Jerry Sunderland, não sabia. Tinham-no enviado para a vila há anos, quando a tentativa da sua mãe de a salvar falhara, com instruções de se acomodar lá sem chamar a atenção, de tratar do seu negócio e de esperar que aparecesse um momento propício para entrar em contacto com Helena e entregar-lhe uma mensagem do senhor Pendenning.
De algum modo e durante a longa viagem da costa até Londres, Helena pressentira isso, embora se tivesse negado a considerar a possibilidade. Juntamente com o bilhete do advogado, Jerry entregara-lhe dinheiro para que pudesse fazer a viagem lentamente, mas esse receio obrigara-a a viajar dia e noite sem descanso, sem sequer reparar na variedade maravilhosa do terreno que ia atravessando. Explorar as maravilhas do mundo podia esperar. Com as pernas doridas devido ao uso daqueles sapatos rígidos e a comichão da capa áspera de lã que Jerry lhe dera, fizera a viagem com o bilhete na mão com a morada do advogado e com uma única ideia em mente: encontrar a sua mãe.
Mas ia ser impossível encontrar a sua mãe, porque, há mais de um ano, como o senhor Pendenning acabara de lhe dizer, a sua mãe estava sepultada numa pequena ilha das Caraíbas, a meio mundo de distância dali. O lugar em que Gavin Seagrave, o homem que amava e com quem fugira, se instalara depois de se ter visto forçado a abandonar Inglaterra.
O objectivo que a ajudara a sobreviver durante as sovas, o isolamento e as privações, que lhe dera esperança e a ajudara a perseverar, desapareceu como a neve sob sol do Verão.
Pela primeira vez na sua vida, Helena sentiu-se verdadeiramente sozinha.
– E o que vou fazer agora? – sussurrou, sem perceber que o dissera em voz alta.
– Viver a vida, filha – disse o senhor Pendenning, com suavidade. – Mantive correspondência com a sua mãe durante anos e acho que posso oferecer-lhe o conselho que ela própria lhe teria dado. Quando a sua saúde começou a ressentir-se e percebeu que provavelmente não sobreviveria ao seu pai, o único objectivo da sua mãe passou a ser resolver tudo para que, assim que a menina fosse livre, tivesse todos os meios necessários ao seu alcance para fazer o que desejasse. E, embora ainda não tenha recebido os detalhes dos advogados do seu pai, como sua herdeira universal, tal como da sua mãe, descobrirá que vai ser uma jovem extremamente rica.
– Não quero saber nada da herança do meu pai – declarou, com veemência.
O advogado olhou para ela com compaixão.
– Embora saiba que não sentia afecto por ele, isso não altera o facto de continuar a ser legalmente a sua herdeira. Para além de dinheiro, há...
– Não! – interrompeu-o. – Não quero nada dele. Nem sequer um punhado de terra das propriedades que tinha. Nem um tostão do seu dinheiro. Preferia viver nas ruas.
O advogado sorriu.
– Não vai ter de o fazer, garanto-lho. No entanto, deve considerar a parte das propriedades do seu pai que provinham do dote da sua mãe. Pode vender o resto e investir o que conseguir.
– Conservarei o que for da minha mãe, mas não quero nada do meu pai. Nada de nada. Fica claro?
– Como desejar. E o que quer fazer com Lambarth Castle? Foi o seu lar e da sua mãe e, se não desejar viver nele por ser tão remoto, pode procurar um comprador.
– Eu gostaria que me enviassem os livros da biblioteca. Quanto ao resto – Helena olhou fixamente para o advogado, – quero que seja destruído e que os escombros sejam atirados ao mar.
– Sim. Entendo. E os empregados? – perguntou o homem, pálido.
– Quando o meu pai faleceu, só havia Holmes e a sua esposa – recordava bem como gostavam da crueldade do seu pai. – Suponho que não está em meu poder negar-lhes o que o meu pai lhes deixou no seu testamento, pois não? Que fiquem com o que é deles, mas nem mais um cêntimo. Disse que agora sou uma jovem rica, não é assim?
– Extremamente rica.
– E que posso gastar essa riqueza como quiser, não é?
– A sua mãe pediu-me para a aconselhar, mas à parte disso, pode gastá-lo como quiser.
– Nesse caso, quero que se faça mais uma coisa em Lambarth Castle: erigir um monumento de mármore no cemitério.
– Para marcar o lugar da sepultura do seu pai, suponho.
– Claro que não. Os corvos chegam. Quero que o monumento marque o lugar do enterro de uma idosa, Sally... desconheço o seu apelido. Era uma curandeira e minha... amiga – disse, emocionada.
– Sei que isto deve ser muito difícil: ter de deixar o único lugar onde viveu, viajar até tão longe e ter de descobrir que perdeu a pessoa que andava à procura... Falámos de assuntos económicos, mas não do que tenciona fazer a partir de hoje. Permite-me que lhe faça algumas sugestões?
De repente, Helena sentiu o peso das longas horas de viagem sem dormir e quase sem comer.
– Eu... agradeceria – murmurou.
– Tome, beba um gole de vinho – disse o senhor Pendenning, dando-lho. – Resumir-lhe-ei o que acho que devia fazer e depois deixá-la-ei descansar.
– Obrigada – agradeceu Helena, aceitando o copo. – Preciso de repousar um pouco.
– A sua mãe deixou instruções muito específicas no caso de todas as pessoas que mencionava no seu testamento estarem vivas e dispostas a cumprir os seus desejos. Depois de passar tantos anos confinada ao lado do seu pai, queria que pudesse viajar, estudar a matéria que mais lhe interessasse com os melhores tutores: música, dança, arte, literatura... mas especialmente desejava que ocupasse o lugar que lhe corresponde na sociedade como parte integrante de uma família que a ame, o tipo de família que a sua mãe recordava ter tido na sua infância.
– Enquanto a minha mãe esteve comigo, tive esse tipo de família.
– Depois de ler a correspondência que a sua mãe manteve comigo ao longo de todos estes anos e de ver a preocupação que sempre mostrou por si, tenho a certeza de que era assim. Gostaria que voltasse a sentir-se tão unida a alguém como então, de modo que me disse que quereria que fosse viver com a sua prima e amiga de infância, Lillian Forester.
– A prima Lillian! Lembro-me de que a minha mãe me falava dela quando eu era pequena.
– A sua mãe pensou que poderia confiar na sua prima que, na verdade, é agora lady Darnell, para a aconselhar sobre o guarda-roupa adequado e para facilitar a sua entrada na sociedade como a jovem culta e independente que a sua mãe sabia que ia ser.
Ter um lar, com uma mulher que fora muito amada pela sua mãe, que a amara... Teve de pestanejar várias vezes para não chorar. Nunca preencheria o terrível vazio que a perda da sua mãe deixara, mas a tremenda solidão que a embargara ao saber da sua morte cedeu um pouco.
– Sim, acho que gostaria. No entanto... e se lady Darnell não desejar aceitar-me em sua casa ou se descobrirmos que não conseguimos conviver juntas? – ela sorriu. – Passei tanto tempo a viver sozinha que talvez não seja uma convidada... confortável. Nesse caso, disporia de recursos suficientes para poder viver na minha própria casa?
– Teria recursos para comprar uma casa em cada uma das cidades de Inglaterra! Mas não acho que seja necessário. Tomei a liberdade de entrar em contacto com lady Darnell para lhe dizer que vinha a caminho daqui. Quando acabarmos de conversar, enviar-lhe-ei um bilhete a avisá-la de que já chegou, e espero que o seu enteado, lorde Darnell, venha buscá-la para lhe dar as boas-vindas à família.
– Lorde Darnell? Porque é que a prima Lillian não vem pessoalmente?
– Não sei se gostará de o ouvir, tendo em conta a sua experiência pessoal, porém, de acordo com as leis inglesas, quase todos os assuntos relacionados com dinheiro e família ficam nas mãos do chefe da família masculino. No caso de lady Darnell, é lorde Darnell, a mais velho dos filhos do seu falecido marido. Ela vive com ele.
– Nesse caso, preferia que me dissesse o que fazer para comprar a minha própria casa. Não desejo voltar a ficar sob o jugo de nenhum homem – declarou Helena.
– Embora compreenda o seu modo de pensar, garanto-lhe que lorde Darnell é um jovem excelente, um oficial do exército muito respeitado que serviu nas guerras peninsulares e em Waterloo com grande valentia. Devia conhecê-lo antes de negar a possibilidade de viver com a sua prima. Era o que a sua mãe desejava.
Se não fosse por isso, teria rejeitado a possibilidade imediatamente. Mas ficou a pensar por um instante com o sobrolho franzido, dividida entre a esperança de recuperar o pouco que pudesse do espírito da sua mãe e o medo justificado de viver sob o controlo de outro homem.
– Se aceder a conhecê-lo, se aceder a viver sob o seu tecto e depois mudar de opinião, poderei ir-me embora quando desejar?
– Certamente. De agora em diante, é dona da sua própria vida.
Helena acabou por assentir sem demasiada convicção.
– Suponho que posso conhecê-lo, já que era o que a minha mãe desejava.
– Excelente! E agora tenho de lhe dizer que guardei o mais especial para o final. Durante os anos que estiveram separadas, a sua mãe escreveu-lhe frequentemente. Sabendo que o seu pai destruiria as suas cartas se tentasse enviar-lhas, enviou-mas para que as guardasse.
De uma gaveta da mesa tirou uma caixa de madeira.
– Tenho-as todas aqui, guardadas para si como era o seu desejo. A primeira é a sua última carta, escrita quando já sabia que não iria voltar a vê-la. Na última carta que me escreveu, pediu-me que essa fosse a primeira carta que lesse.
O senhor Pendenning puxou um cordão que pendia junto da parede.
– O meu assistente levá-la-á para uma divisão onde possa estar sozinha. Chamá-la-ei quando lorde Darnell chegar. Posso oferecer-lhe mais alguma coisa?
Helena abanou a cabeça.
– Não, obrigada. Foi muito amável. Posso? – perguntou, estendendo os braços.
– Tome, querida. A sua mãe amava-a muito – declarou, entregando-lhe a caixa.
Com aquela caixa nas mãos, seguiu o jovem quase sem o ver. Tinha o coração demasiado cheio de angústia, alegria e confusão para falar.
Perdera a sua mãe para sempre, mas não tinham conseguido silenciar a sua voz. Nas suas mãos estava a prova indelével do afecto que lhe professara durante os dez longos anos de separação. Um tesouro de valor incalculável fechado numa simples caixa de madeira.
Uma vez a sós na sala, sentou-se numa poltrona junto da janela e tirou a última carta:
Minha querida Helena,
A dor que me causa a certeza de não voltar a ver a tua linda cara quase me impede de escrever. Não poderei voltar a abraçar-te, nem a sentir o batimento do teu coração. Mas devo pôr a minha dor de parte e perseverar, porque, embora o fardo de saber que ficaremos separadas para sempre seja insuportável, minha querida menina, ainda seria pior para ti se ganhasses a tua liberdade e não tivesses uma palavra minha para mitigar a tua dor quando descobrires que já não estou contigo. Por isso, meu tesouro, deixa-me dizer-te nesta carta o que te diria se pudéssemos estar juntas...
Quando Helena chegou ao fim da carta, as letras apagavam-se e as mãos tremiam de tal modo que não foi capaz de voltar a dobrar o papel. De algum modo, conseguiu guardar a carta na caixa, sobre vários pacotes de cartas atadas com um cordão.
Só então é que se permitiu dar rédea solta às lágrimas. Chorou até que, cansada, só restaram forças para correr as cortinas da divisão, recostar-se na poltrona e adormecer.
Adam Darnell deixou a conta sobre o monte que já tinha na mesa e passou a mão pelo cabelo. Quase preferiria estar outra vez com Wellington, a preparar-se para atacar as linhas francesas inimigas, a estar ali em Londres a tentar salvar as suas propriedades do desastre que tinham sofrido durante a longa doença do seu pai.
Talvez o melhor fosse aceitar o inevitável, seguir o conselho do seu advogado e encontrar uma herdeira rica para se casar. O som de alguém a bater à porta arrancou-o da consideração daquele futuro triste.
– Adam, posso entrar? – a porta entreabriu-se e a sua madrasta espreitou. – Lamento incomodar, mas trata-se de uma coisa urgente.
Adam levantou-se, perguntando-se com indulgência que tipo de crise afligia a sua madrasta: a perda dos óculos, o aparecimento de um pardal morto no jardim...
– Entra, por favor, e assim evitar-me-ás ter de me ocupar de todas estas contas – disse, apontando para a cadeira que havia junto da mesa.
– Ah, isso! – exclamou ela, fazendo um gesto displicente com a mão. – Queima-as. Era o que o teu querido pai fazia sempre.
E era por isso que estava tudo num estado lastimável, disse Adam para si.
– Não pode tratar-se de nada demasiado grave, a julgar pela tua alegria, mãe. Nem o sol pode fazer-te sombra com esse lindo vestido.
Lady Darnell sorriu e os seus olhos azuis brilharam.
– És o mais galante dos cavalheiros, Adam. Quando a alfaiate me mostrou esta seda amarela e esta renda maravilhosa, soube que tinha sido feita para mim.
A segunda esposa do seu pai, filha de um barão de fortuna generosa, era uma mulher muito extravagante, mas com um coração tão cheio de ternura e alegria que seria indelicado e inútil incomodá-la com os seus gastos. Além disso, como estivera longe a servir o seu país, nunca conseguiria pagar-lhe a dívida de gratidão que contraíra com ela por ter abandonado a sua adorada vida social em Londres para cuidar do seu pai no seu declive longo e lento até à morte.
Um espírito como o dela não devia apagar-se com os detalhes de dívidas e hipotecas. Teria de poupar noutros âmbitos... e procurar a herdeira cujo dote encheria as arcas da família.
– É um assunto muito urgente – insistiu a sua madrasta.
– O que perdeste, mãe?
Lady Darnell entregou-lhe uma carta.
– Acabei de receber esta mensagem de um advogado que se ocupa das propriedades da minha falecida prima Diana, em que diz que a sua filha, agora órfã de pai e mãe, está a caminho de Londres. Nela diz que era desejo de Diana que viesse viver comigo.
– A tua prima era a mãe da rapariga? Devia ser o seu pai a determinar tal coisa.
– Suponho que sim, mas isso é com os advogados. Enquanto isso, a rapariga precisa de um lar.
Resolver semelhante complicação legal não ia ser simples, mas alojar uma menina durante esse tempo também não sobrecarregaria demasiado as suas contas.
– E desejas acolhê-la, mãe? Eu não gostaria que te sentisses obrigada a fazê-lo.
– Eu adoraria que estivesse connosco! Mas... antes de dizeres que sim, tenho de te informar de que Diana se viu envolvida num escândalo há anos. Não podes responsabilizar uma pobre menina por isso, contudo, já sabes como são as pessoas e, tendo em conta que tu andas à procura de esposa e que a temporada aqui em Londres está prestes a começar, não quereria que uma estupidez cometida por alguém da minha família pudesse... limitar as tuas opções.
– Nesse caso, não tens de te preocupar, mãe, considero que ninguém seria capaz de responsabilizar a sua filha pelas transgressões da sua mãe. Que idade tem a menina e quando chega?
– O advogado diz que será em breve. E não sei dizer-te que idade tem. Já sabes que sou um desastre com os números! Quando Diana e Vincent Lambarth se casaram, ele afastou-a da família, fechando-a num castelo que tinha no meio do nada, e lá ficou. Lambarth nunca a deixou voltar a Londres, nem sequer trazer a menina para que a conhecêssemos, de modo que, embora não se possa perdoar o que fez, não me surpreendeu. Era quase prisioneira de Lambarth naquele sítio tão horrível ao pé da costa, com uma humidade horrível, imagino.
– E o que foi que tanta humidade a obrigou a fazer?
– Primeiro tenho de te referir que Diana, quando foi apresentada à sociedade, se apaixonou perdidamente por um jovem totalmente inadequado para ela. Não é que a sua família fosse desdenhável, já que se tratava do filho mais novo do visconde de Seagrave, mas tinha um carácter selvagem e ingovernável. Na Primavera em que Diana o conheceu, tinham acabado de o expulsar de Oxford e, embora Lambarth a cortejasse há meses, assim que conheceu Gavin, já não teve olhos para mais ninguém. É claro, a sua família tentou dissuadi-la, contudo, então, um marido ciumento desafiou Gavin e, quando ele o matou num duelo, viu-se obrigado a abandonar o país. Diana ficou devastada e, como Lambarth ainda a queria, ela rendeu-se e acabou por se casar com ele.
– Mas a união não funcionou.
– Suponho que não. Em qualquer caso, depois de passar quase uma década fechada naquele castelo, Diana fugiu. Descobrimos que fugiu num navio de pesca até à Irlanda e depois entrou num navio até às Caraíbas, onde se encontrou com Gavin. Lambarth recusou-se a conceder-lhe o divórcio, de modo que nunca puderam casar-se.
Lady Darnell fez uma pausa durante a qual ficou pensativa.
– Às vezes, pergunto-me se alguma vez lamentou ter abandonado o seu marido, já que se viu obrigada a viver na vergonha e a renunciar à sua filha. Éramos muito unidas quando éramos crianças, contudo, quando se casou com Lambarth, perdemos o contacto.
– Pobre menina... – murmurou.
– Sim. Deve ter sido horrível perder a sua mãe e depois viver tão isolada até à morte do seu pai.
– E agora queres consolá-la, não é?
Lady Darnell sorriu timidamente.
– A minha maior tristeza foi sempre que Deus não me tenha abençoado com filhos. Com isso, não quero dizer que Charis e tu não sejam muito queridos para mim, mas quando me casei com o teu pai já eram muito crescidos de modo que gostaria de me ocupar da filhinha da minha prima Diana.
Não parecia que a intenção da sua mãe fosse de carácter temporário, embora também não pudesse culpá-la por se preocupar assim com a filha da sua prima. Além disso, uma criança não comia muito. Quando chegasse o momento de precisar de um guarda-roupa completo e de um dote para a sua entrada na sociedade, certamente, já estaria a viver com algum familiar paterno... ou ele teria conseguido recuperar a economia dos Darnell.
– Quando vamos buscá-la?
– Ai, Adam, sabia que a tua compaixão não me falharia! Vou enviar um bilhete ao advogado.
Mal tinham decorrido duas horas desde que soubera da existência da órfã quando Adam deu por si a dirigir a sua caleça para o centro da cidade, para a morada que lady Darnell lhe dera. Com a boneca cheia de laços que lady Darnell lhe dera para levar como presente de boas-vindas, preparou-se para passar a tarde a falar com advogados para conseguir o privilégio de adoptar uma desconhecida.
Aquilo sublinhava a necessidade imperativa de encontrar uma solução para a situação económica dos Darnell. Naquela mesma manhã, depois de acabar de verificar as contas, tivera uma ideia que esperava que pudesse poupar-lhe a humilhação de ter de arrastar o seu apelido e a sua linhagem por festas e concertos à procura de alguma herdeira dos novos-ricos da cidade, desde que a sorte e a sua amiga da infância Priscilla Standish lhe sorrissem.
Depois de ter passado bastante tempo fora a lutar na guerra contra a França e depois de ter arrendado Claygate Manor, a casa de campo no fim das propriedades do seu pai, não voltara a vê-la. Mas sabia que continuava solteira. Se aquela jovem gordinha e alegre que adorava segui-lo nas suas correrias de juventude não tivesse mudado, teria a oportunidade de encontrar a harmonia marital com ela.
Teria de ir fazer-lhe uma visita depois de resolver aquele assunto da órfã.
Meia hora mais tarde, um assistente acompanhou-o à sala privada do senhor Pendenning, onde segundo o jovem, o advogado o receberia em breve.
A divisão estava na penumbra, já que a cortina da única janela estava corrida. Apesar de ser o fim do Inverno, a tarde era de um sol brilhante e, enquanto os seus olhos se habituavam àquela penumbra, examinou a divisão. Havia um jornal sobre a mesa e, quando ia folheá-lo, ouviu um ruído num canto que lhe passara despercebido. Esqueceu a pobre pequena ao ver que o que lhe parecera uma manta deixada sobre uma poltrona era uma mulher que se espreguiçava.
Umas pernas fracas como palitos e uns pés nus apareceram sob uma saia preta e descolorida que era demasiado curta para aquela mulher quase tão alta como ele. Ela ofereceu-lhe uma mão ossuda.
O nariz sobressaía num rosto magro, de maçãs do rosto marcadas e pele sem brilho. Tinha o cabelo escuro e uns olhos felinos que se fixaram nele.
Quando os lábios da mulher se curvaram num sorriso brincalhão, percebeu que estivera a olhar para ela descaradamente, boquiaberto.
Consciente de que, pela primeira vez nos seus quase trinta anos, não encontrava palavras para lhe dar as boas-vindas, corou. Antes de conseguir falar, a mulher afastou a mão que lhe oferecera e fez uma breve reverência.
– Deve ser lorde Darnell – disse. – É... um prazer conhecê-lo.
Embora a rapariga fosse o exemplar menos atraente de mulher que Adam alguma vez vira, a sua cortesia era graciosa. O olhar carregado de ironia daqueles olhos pretos penetrantes e o sarcasmo na sua forma de o cumprimentar revelaram-lhe que a jovem era suficientemente inteligente para perceber o que pensava da sua aparência.
Porém, parecia quase divertida com o seu desconforto evidente, sublinhado pela boneca de trapos que tinha na mão.
Antes de Adam conseguir decidir se se sentia ofendido ou divertido com a sua reacção, a porta abriu-se e um cavalheiro pequeno e com óculos entrou apressadamente.
– Meu Deus... – sussurrou, ao vê-los, – lorde Darnell, eu queria ter tido a oportunidade de falar consigo em privado antes de... mas estou a ver que é demasiado tarde. Arthur Pendenning, senhor, ao seu serviço – apresentou-se, com uma leve inclinação. – Já se apresentaram, menina Lambarth?
– É verdade – respondeu a rapariga. – Tal como era o seu desejo. E agora, se pudermos acabar a nossa reunião, ir-me-ei embora.
– Não há pressa – respondeu o advogado. – Como sei que a sua viagem foi longa e cansativa, pedi um pequeno lanche. E se nos sentarmos e conversarmos um pouco? Por favor, menina Lambarth... lorde Darnell, quererá acompanhar-nos?
Quase contra a sua vontade, Adam murmurou o seu assentimento. Longe de parecer uma órfã necessitada do apoio da sua família, a rapariga parecia quase hostil.
Adam recordou-se que não devia julgá-la com demasiada dureza. Ao fim e ao cabo, carecera de uma mãe para a guiar e, segundo lady Darnell explicara, o seu pai tornara-se quase um eremita. Certamente, não podia culpá-la do que parecia uma falta de respeito na sua forma de se comportar.
– Ah, aqui está a bandeja – disse o senhor Pendenning. – Lorde Darnell, menina Lambarth, querem sentar-se?
O criado tirou a tampa e saiu. Adam acomodou-se no sofá e, com evidente má vontade, ela sentou-se na beira de uma poltrona.
Pensaria que ia mordê-la?, perguntou-se, ao ver que o observava pelo canto do olho. Parecia mais calma na presença do advogado, que se sentou perto dela e começou a servir o chá.
Adam estava prestes a fazer algum comentário para aliviar a situação quando a jovem se virou, de repente, para a chaleira, cheirando o ar.
O senhor Pendenning ofereceu-lhe uma chávena que ela aceitou com cautela para inspeccionar o seu conteúdo.
Começava a suspeitar que talvez a rapariga não estivesse no seu juízo perfeito quando, de repente, a viu sorrir. Uma intensidade apaixonada iluminou o seu rosto e as suas feições encheram-se de vida, de tal modo que foi quase um susto para Adam.
– É chá, não é? – perguntou ao advogado.
– Sim, querida. Nunca bebeu?
– Não desde que a minha mãe se foi embora, mas lembro-me de que era bom.
– Prove-o e veja o que acha.
– Sim! É muito bom! – exclamou, depois de beber um gole.
– Algumas pessoas preferem acompanhá-lo com bolo ou biscoitos. Quer prová-los?
Pousou a chávena e inspeccionou a bandeja que lhe oferecia.
– Bolo. É mais... doce do que o pão, não é?
– Também não voltou a comê-lo desde que a sua mãe se foi embora?
– Não. Os prisioneiros só comem pão e água, não é? – perguntou, com ironia. – Embora às vezes variasse um pouco, quando conseguia escapulir-me e visitar Sally, que me dava amoras silvestres.
– Acho que o achará ainda mais doce do que as amoras. Prove-o.
Embora o tom do senhor Pendenning continuasse a ser só amável, o olhar que lançou a Adam foi de pura indignação.
Começava a compreender o que o advogado tentava demonstrar-lhe. Adam observou-a com atenção, atónito com a exploração maravilhada que a menina Lambarth fazia de uma comida que devia ser corrente para um londrino da sua classe.
Sentiu um aperto no coração ao vê-la prová-lo e um novo calafrio com o seu sorriso deslumbrante.
– Que maravilha!
– Coma à vontade, querida. Deve estar cheia de fome depois de uma viagem tão longa.
Houve qualquer coisa no tom do advogado que o fez pensar que falava de mais do que a viagem até Londres.
Depois, provou os biscoitos e o senhor Pendenning destapou outro prato.
– Prove.
A jovem pegou num daqueles objectos redondos e olhou para ele.
– Que suave – disse, aproximando-o do nariz. – Cheira a doce como as amoras. Come-se tudo?
– Não. Primeiro, tem de as descascar – respondeu, ensinando-a a fazê-lo. – São laranjas.
A sua gargalhada inesperada foi como música para Adam.
– Claro! Como a cor. Li sobre esta fruta, mas o livro não tinha ilustrações, portanto não sabia como era.
– Dê uma trinca, querida. É doce, mas não se parece com as amoras.
Com os olhos a brilhar de curiosidade, deu uma trinca e voltou a desatar a rir-se quando uma gota do sumo escorregou pelo queixo. Depois, apressou-lhe a limpá-la com a outra mão.
Até àquele momento, mantivera essa mão escondida na saia e Adam viu com estupefacção a cicatriz que começava na base do polegar e chegava até ao pulso.
O advogado também olhava para ela e, quando ela percebeu, escondeu rapidamente a mão na saia e o seu sorriso desapareceu.
– Coma outro gomo, menina Lambarth.
– Obrigada, mas é suficiente. Acabarei o chá.
– Mal comeu. Achava tê-la ouvido dizer que não comia nada desde a sua chegada a Londres esta manhã.
– Não como desde ontem, mas é suficiente, a sério. Estou habituada a comer... pouco – disse e a ironia voltou a tingir a sua voz.
«Meu Deus», pensou Adam, alegrando-se por o senhor Pendenning se ocupar da conversa, já que as conclusões a que estava a chegar o tinham deixado sem fala. De repente, alegrou-se por lady Darnell lhe ter pedido para ir buscar a filha da sua prima. Depois do que vira e ouvira, mesmo que a rapariga tivesse duas cabeças e cauda, ter-se-ia sentido obrigado a levá-la.
A menina Lambarth acabou o chá e pousou a chávena.
– Obrigada, senhor Pendenning. Foi maravilhoso – disse. – Suponho que percebeu que o seu lanche foi a refeição mais variada que alguma vez comi.
– Isso é algo que mudaremos imediatamente – disse o advogado. – Imagino que estará de acordo, lorde Darnell.
– É claro – replicou. – Embora a sua prima não recordasse exactamente a sua idade, menina Lambarth – disse, apontando para a boneca que deixara numa mesa, – é o seu desejo mais ardente, que tanto a minha irmã como eu partilhamos, que nos dê a honra de partilhar a nossa casa.
– Tem uma irmã? – perguntou-lhe, interessada.
– Sim. Charis tem dezoito anos... mais ou menos a sua idade, não é assim?
– Acabei de fazer vinte anos. Uma irmã... seria maravilhoso – murmurou.
– Charis é uma rapariga doce e encantadora, verá. Quererá dar-nos o prazer de viver connosco?
– De certeza que é o que quer? – perguntou-lhe. – Já viu o meu aspecto e ficou com uma ideia de como vivi e não... sei se conseguirei encaixar numa casa elegante de Londres. Embora a ideia de viver com a minha prima seja tentadora, assim como ter uma irmã, acho que ficarei melhor sozinha.
– Não, querida, não pode ser! – protestou o senhor Pendenning. – Na nossa sociedade, as jovens solteiras não vivem sozinhas.
Ela encolheu os ombros.
– Garanto-lhe que sou perfeitamente capaz de cuidar de mim própria.
– Imagino que sim, mas essa não é a questão. Uma jovem solteira não pode viver sozinha, é só isso.
– Antes disse-me que, se quisesse, poderia comprar casa em todas as cidades de Inglaterra.
– Era uma forma de falar. Dispor dos recursos e fazê-lo são duas coisas bem diferentes.
– Senhor Pendenning, vivi como uma prisioneira na casa de um homem durante estes últimos dez anos e não tenciono consentir que alguém volte a ser dono da minha vida. E, por outro lado, não me importo se a sociedade aprova ou não a minha forma de vida.
Depois do que vira e ouvira, Adam compreendia a sua renitência, mas o seu instinto de protecção obrigou-o a procurar outro argumento que pudesse fazê-la reconsiderar a sua posição.
O advogado adiantou-se.
– Lamento, mas não devo ter-lhe explicado bem a situação. Naturalmente, não se espera que se importe com a opinião de pessoas que não conhece, porém, ao ser parente de lady Darnell, a sociedade esperará que lhe ofereça abrigo e protecção, mesmo que não precise deles. Se decidir não viver com ela, considerarão que não cumpriu com os seus deveres consigo, de modo que, se viver sozinha, a sua prima será duramente criticada.
Embora Adam não conseguisse imaginar porque é que isso incomodaria a rapariga, o seu silêncio e o sobrolho que franzia pareciam indicar que o argumento a afectara.
– Eu não gostaria de manchar a reputação da prima da minha mãe – disse. – Se decidir ir viver consigo – disse a Adam, – deverá compreender que, se a experiência não for satisfatória, serei livre para me ir embora quando quiser. Felizmente, poderemos estar juntos o tempo suficiente para eu determinar o que quero fazer e onde quero viver. Acho que gostaria de viajar, de modo que se me for embora da Europa, a prima Lillian não terá de suportar críticas.
– Nesse caso, teremos de nos certificar de que a vida connosco é mais agradável do que a ideia de viver sozinha – respondeu, decidido a mostrar à órfã a bênção que a família podia ser.
Ela olhou para ele muito séria.
– Têm uma biblioteca grande?
Surpreendido mais uma vez por uma mudança tão radical de assunto, respondeu:
– O meu pai era um bibliófilo, portanto acho que lhe parecerá uma biblioteca interessante e extensa.
– Quero que me enviem os meus livros de Lambarth. Disporei de aposentos para usar à minha discrição?
– Um quarto e uma sala privada. A biblioteca, as salas de estar e as salas de jantar terão de ser partilhadas com o resto da família.
– Se aceder a ir, terá de consentir que pague os meus gastos. Não! – interrompeu-o, quando quis protestar. – Insisto. Há determinados confortos que tenho de ter e não quero ser um fardo para si.
Adam nunca tivera uma conversa tão estranha nem tão franca em toda a sua vida.
– E poderia perguntar-lhe a que tipo de confortos se refere?
– Desejo manter a lareira acesa nos meus aposentos dia e noite. Passei frio durante quase toda a minha vida e não quero voltar a ter de o suportar.
– Pode ter a lareira acesa sempre que quiser – prometeu.
– Quero uma cama com um colchão de penas tão fofo que, quando me deitar, tenha a sensação de estar a flutuar no ar – continuou, com um sorriso. – Um tapete turco tão grosso que os pés se afundem nele até aos tornozelos, como se tivesse chinelos de penas. Ah, e falando de chinelos – acrescentou, olhando para o senhor Pendenning, – se esses instrumentos de tortura que Jerry Sunderland me proporcionou em jeito de sapatos são um indicativo do que posso esperar como calçado, continuarei a andar descalça.
O advogado desatou a rir-se.
– Como o pobre Jerry não sabia qual era o seu número, deu-lhe os primeiros que encontrou no sapateiro. Garanto-lhe, minha querida, que os sapateiros de Londres conseguem confeccionar uns sapatos tão suaves e confortáveis que lhe parecerá que continua descalça.
– Muito bem. Deitarei estes para o primeiro fogo que acender no meu quarto, juntamente com esta saia, assim que conseguir encontrar outra.
– Tomei a liberdade de avisar uma costureira para que venha atendê-la aqui mesmo – respondeu o senhor Pendenning. – Vai trazer vários vestidos que podem modificar-se facilmente para que se ajustem ao seu tamanho. Quanto ao resto, tenho a certeza de que lady Darnell a levará à sua própria costureira e a ajudará na compra das roupas.
– Garanto-lhe, menina Lambarth! A minha mãe adora ir às compras e quase posso garantir-lhe que a minha irmã pedirá permissão para se juntar à expedição – declarou Adam.
– Quero cores alegres. Nada de pretos. E tecidos suaves, como o deste sofá.
– Tenho a certeza de que lady Darnell conseguirá encontrar algo que seja do seu gosto. Então, decidiu ir com lorde Darnell, como era desejo da sua mãe?
A menina Lambarth voltou a olhar para Adam.
– De certeza que a biblioteca é grande?
– Muito grande.
– E que terei um colchão grosso e de penas?
– Suave como uma nuvem.
– E aposentos quentes?
– Tanto que o papel das paredes se descolará.
Alguém bateu à porta e entrou um dos assistentes do advogado.
– Senhor Pendenning, disse-me para o avisar quanto chegasse a costureira.
– Está pronta para ter um vestido novo? – perguntou-lhe.
– Mais do que nunca! – exclamou, sorrindo.
– Acompanhará lorde Darnell a conhecer a sua prima quando acabar?
– Irei com ele.
– Excelente! – o advogado sorriu. – Acompanhe a menina Lambarth e a costureira ao escritório de trás e que ninguém as incomode! – ordenou ao seu assistente.
– Esperarei por si aqui, menina Lambarth – disse Adam.
Ela parou na soleira da porta para olhar para ele.
– Espero que nenhum dos dois tenha de lamentar esta decisão.
Algo na sua independência causou-lhe uma espécie de arrepio carnal, que devia ser apenas compaixão devido ao seu sofrimento e raiva por conhecer o tratamento infame de que padecera.
– Tenho a certeza de que a sua estadia em minha casa será um prazer para ambos.