Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.
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28001 Madrid
© 2000 Janet Justiss
© 2014 Harlequin Ibérica, S.A.
Comprometido com outra, n.º 261 -Janeiro 2014
Título original: A Scandalous Proposal
Publicado originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.
Publicado em português em 2005
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.
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Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.
I.S.B.N.: 978-84-687-5036-1
Editor responsável: Luis Pugni
Conversão ebook: MT Color & Diseño
Emily Spenser caminhava silenciosamente, escondendo-se atrás dos arbustos do jardim da praça de Saint James. Depois de anos do sol quente de Portugal, o frio húmido da manhã penetrava facilmente nos seus ossos e tremeu, apesar do xaile de lã que usava. Deteve-se num canto do jardim, apertou-se ainda mais contra os ramos que sobressaíam por cima da sua cabeça e esquadrinhou a mansão londrina que se encontrava à sua frente.
Estaria o portão trancado? Àquela distância e com tanta neblina, não podia ter a certeza. As janelas que davam para a praça tinham as venezianas fechadas, porém, como ainda não tinha amanhecido, isso não significava que o dono estivesse fora da cidade.
Com cautela, voltou para trás, atravessou a praça, escondendo-se atrás do jardim, e entrou numa rua estreita. Com o coração a bater com força, entrou pelo portão das traseiras. Sem dúvida, numa mansão como aquela, com uma afluência contínua de vendedores e fornecedores, vestida com um avental e uma touca, passaria despercebida.
Um murmúrio de vozes saía pela porta entreaberta da cozinha. Emily encheu-se de coragem, atravessou rapidamente o pátio deserto, bateu à porta com os nós dos dedos e entrou. Havia um grupo de criados diante da lareira, com chávenas de chá fumegante na mão. Emily virou-se para a mulher madura que tinha um molho de chaves pendurado à cintura e cumprimentou-a educadamente.
– Trago um embrulho para milorde – anunciou, imitando o sotaque fechado dos camponeses de Hampshire, entre os quais fora criada. – A minha senhora mandou-me entregar-lho pessoalmente.
– Nesse caso, rapariga, tens muito que andar – respondeu a mulher, dando uma gargalhada. – Milorde não está em Londres.
Emily conteve o alívio que sentiu e deu um gemido de desolação.
– Mas a minha senhora dá-me uma sova se não lho entregar! Voltará hoje?
– Não me parece. Deu férias a metade dos criados, dizendo que mandaria chamá-los mais tarde, portanto, não esperamos que volte tão depressa.
Emily não podia acreditar na sorte que tinha.
– Ficará tanto tempo fora? – perguntou com desconsolo.
– Sim. Se tivesses vindo na semana passada, tê-lo-ias encontrado, mas foi-se embora de repente e o senhor Daryrumple, o mordomo, disse-nos que não regressará na Páscoa e, certamente, não virá antes do verão.
Emily ocultou a sua alegria por detrás de um olhar de angústia.
– A minha senhora vai ter um grande desgosto.
– Ora! Será que espera que faças milagres? Deve ser uma boa peça, essa tua senhora... – a mulher riu-se, entredentes. – Toma um chá e recupera o fôlego, rapariga, antes de voltares para casa.
– Muito agradecida, senhora, mas não me atrevo. Irá moer-me de pancada, se não regressar antes das sete.
Entre os murmúrios de pena dos criados e um protesto sobre as injustiças dos senhores, em geral, Emily fez uma vénia e saiu pela porta.
Ao passar pelo portão das traseiras, tirou a touca de criada, atirou-a ao ar e abraçou-se com força.
Ele não estava em Londres. Podia começar uma vida nova.
– Vais buscar um chapéu para a tua mãe? Meu Deus, que filho tão solícito!
Evan Mansfield, conde de Cheverley, bateu com a bengala de passeio no tornozelo do seu interlocutor. Ao ouvi-lo a gemer de dor, replicou:
– Como a tua mãe teve a prudência de morrer quando não eras mais do que um pirralho, não sabes como cuidar de uma dama – sorriu, enquanto o amigo Brent Blakesly lhe dedicava um olhar funesto, e prosseguiu: – Na verdade, a minha mãe queria ir buscar o chapéu pessoalmente, mas eu não deixei. Ainda não recuperou daquela constipação atroz. Claro que não é preciso ires comigo. Porque não vais indo até ao White’s e pedes vinho para os dois? Diz-lhes que o ponham na minha conta – Evan baixou o olhar para o tornozelo de Brent. – Isso aliviar-te-á a dor.
A testa de Brent deixou de estar franzida.
– Já me sinto melhor, mas despacha-te. Detestaria beber o vinho todo antes de apareceres – tocou na aba do chapéu e afastou-se.
– Não demorarei – gritou Evan. – A loja da madame Emilie é numa travessa de Bond Street.
Brent parou de repente.
– Madame Emilie? – perguntou. Quando Evan assentiu, voltou para trás. – Pensando melhor, vou contigo. Vamos?
Evan arqueou as sobrancelhas.
– Que razão poderias ter para entrar numa chapelaria?
– Digamos que talvez seja... Interessante.
Enquanto caminhavam, Evan voltou a indagar, contudo, Brent não se dignou a responder. Limitou-se a abanar a cabeça e declarou que Evan tinha de ver com os seus próprios olhos.
Passados alguns minutos, chegaram à entrada da loja. A sineta tilintou quando abriram a porta e Evan murmurou:
– É agora que vou descobrir o grande mistério...?
Uma mulher alta virou-se para eles, no interior da loja. Quando os olhos de Evan se adaptaram à escuridão, o resto da frase morreu nos seus lábios.
As formas e as cores desapareceram, e o murmúrio de vozes ficou reduzido a um zumbido longínquo. Só tinha olhos para a mulher elegante, vestida de lilás, com um rosto oval e pálido, emoldurado por caracóis escuros e uns lábios cheios e rosados. Quando ela ergueu os olhos violeta para ele, pareceu surgir entre eles uma corrente de energia, que o sacudiu dos pés à cabeça e o deixou mudo e paralisado.
Evan sentiu uma leve fragrância a lavanda. O seu coração deixou de bater e, no momento seguinte, começou a palpitar desenfreadamente.
– Bolas, Ev, é tão encantadora como Willoughby disse!
Ao ouvir o murmúrio de admiração do amigo, Evan desviou o olhar da jovem. Sentia um formigueiro no corpo.
– É perfeita – corroborou, com voz instável.
– Sorte a tua, que tens a desculpa perfeita para falar com ela! – murmurou Brent. – Vamos, força – e deu-lhe um empurrão.
Para falar a verdade, Evan não poderia ter resistido. Como que hipnotizado, caminhou para ela, mal notando que se afastava com suavidade da mulher gorda com quem parecia estar a conversar.
– Madame Emilie, sou lorde Cheverley – pegou-lhe na mão e levou-a aos lábios.
Voltou a sentir aquela... Corrente que se criava entre eles. A julgar pelo leve rubor que lhe cobriu as faces delicadas, madame Emilie também devia estar a senti-la.
Por muito surpreendente que parecesse, o rosto não refletiu mais nada e os olhos permaneceram inexpressivos, enquanto pousava o olhar frio nele. Ao fim de um momento, franziu o sobrolho e puxou a mão enluvada que Evan continuava a segurar com bastante força. Balbuciando um pedido de desculpas, Evan soltou-a.
– Lorde Cheverley? – repetiu ela, com voz clara. Então, deixou de franzir o sobrolho. – Ah, sim! Recebi a mensagem da senhora sua mãe e o chapéu está pronto. Um momento, milorde.
Depois de inclinar a cabeça para ele, virou-se para a mulher roliça que olhava para Evan com uma expressão de ultraje.
– Lady Stanhope, honra-me que o chapéu seja do seu agrado e agradeço a preferência. Agora, se me der licença... – e fez uma vénia. Erguendo o queixo com desprezo, na direção de Evan, a cliente saiu do estabelecimento. – Por aqui, milorde.
Evan seguiu-a de perto para um escritório pequeno, com os olhos cravados no meneio das suas ancas. Quando ela parou de repente, ao passar pela soleira da porta, Evan quase chocou com ela.
Madame Emilie virou-se para ele com um olhar interrogativo, segurando qualquer coisa com os seus dedos compridos e brancos.
– O chapéu parece-lhe aceitável, milorde? Embrulho-o?
Aqueles lábios carnudos fascinavam-no. A fragrância subtil a lavanda, mais intensa de perto, nublou-lhe o cérebro. Sentiu um impulso quase incontrolável de tocar naquela face cor de marfim, de sentir aqueles lábios junto dos seus. Perseguiria aquela língua fugidia até ao seu refúgio quente e húmido, deslizaria os dedos para a curva incipiente do decote... O corpo de Evan endureceu e da testa brotaram gotas de suor.
– Sim... Claro – murmurou, sentindo o lenço que tinha ao pescoço repentinamente apertado, enquanto tentava recuperar o fio da conversa. – É elegante... Deliciosa. Eh... O chapéu.
Madame Emilie arqueou as sobrancelhas escuras, para olhar para ele com atenção. Evan devolveu-lhe o olhar, pensando que nunca se cansaria de contemplar aqueles olhos que pareciam duas violetas. Não, pareciam amores-perfeitos ou lírios em flor, com a sua cor intensa.
Aqueles lábios tentadores esboçaram um sorriso e Evan compreendeu, com um estremecimento, que devia parecer um perfeito idiota. Antes que pudesse emendar-se, madame Emilie entregou-lhe uma chapeleira.
– Por favor, transmita a lady Cheverley o meu agradecimento pela aquisição e a grande honra que me dá, ao recorrer aos meus serviços. Tenha um bom dia, milorde.
Fez uma vénia e deu-lhe um empurrãozinho para a porta. O toque da mão enluvada atravessou as camadas de tecido, deixando-o, mais uma vez, sem saber o que dizer.
Quando recuperou a voz, estava de pé, com Brent, diante da loja. Um chapéu de ferro pintado, com as palavras «Madame Emilie» balançava suavemente ao vento, por cima da sua cabeça.
– Bouleversé? – Blakesly olhou para ele de cima a baixo e riu-se entredentes. – Não me lembro de te ver tão perturbado por uma mulher, desde aquela bailarina de balé, há anos, quando acabávamos de chegar de Oxford.
Evan abanou a cabeça, confuso. Sentia um formigueiro nas mãos e nos pés, como se tivesse presenciado a queda de um raio.
– Essa bailarina não lhe chega aos calcanhares.
– Claro que não – Brent exalou um suspiro melancólico. – Vamos. Recomendo que tomes uma bebida forte, para te recompores.
Embora os pés avançassem para Saint James, a cabeça de Evan virava-se uma e outra vez para a loja.
– O que sabe Willoughby dela? Fala!
– Sim, milorde! – Brent fez continência, na brincadeira. – Não muita coisa, na verdade. Enviuvou recentemente, a julgar pelo meio luto que usa.
– Meio luto?
– Não te deste conta? – Brent riu-se. – Devias estar muito ocupado a imaginá-la sem o luto. Se bem que, previno-te, segundo Willoughby, se estás a pensar em seduzi-la, apanharás uma deceção. Aparentemente, Saint Clair foi o primeiro a descobri-la mas, depois, todos os do seu grupo desfilaram pela loja, arranjando os pretextos mais disparatados.
– Saint Clair? – repetiu Evan, com desprezo.
– O próprio. Se bem o conheço, as insinuações não devem ter sido nada subtis mas, aparentemente, madame Emilie recusou os seus convites, bem como os dos amigos dele, para jantar ou ir ao teatro. De facto, segundo Willoughby, a única coisa que conseguiram foi que lhes dissesse meia dúzia de palavras educadas, sobre encomendas de chapéus para as respetivas mulheres. Willoughby concluiu que devia ser da classe média e irremediavelmente virtuosa.
Evan olhou para ele com aspereza.
– Eu diria que aguçaste bem os ouvidos. Não é próprio de ti mostrar tanto interesse por uma mulher.
Brent dedicou-lhe um olhar severo.
– E o que me dizes de ti? Não estarás a pensar num novo devaneio, justamente quando acabas de te desfazer da Tempestade? Além disso, quando Richard foi juntar-se a Wellington, prometeste trazer Andrea para Londres. Não tinham uma espécie de... Acordo?
– Nada de formal. Bem sabes como se tornou tímida depois do acidente. Tranquilizei-a, dizendo-lhe que, se não encontrasse nenhum pretendente que lhe agradasse, antes do fim da temporada, sempre poderia casar-se comigo, mas... – desprezou a ideia, fazendo um gesto depreciativo. – Ainda falta muito tempo para isso. Tens algum interesse nessa mulher?
– Não tenho grandes hipóteses – Brent sorriu com ironia. – Se recusou Saint Clair, com toda a sua riqueza, não se rebaixará a conceder os seus favores a um segundo filho, sem título e com rendimentos tão modestos. Tu, pelo contrário... – fez um gesto com a mão. – Poderias conquistar a fortaleza. És rico, bem-parecido, benquisto na sociedade...
– Chega de conversa – resmungou Evan. – Tenho de arranjar um pretexto para voltar lá... Meu Deus, como sou parvo! – e parou de repente.
– O que foi?
– A minha mãe pediu-me que encomendasse outro chapéu, mas estava tão pasmado que me esqueci de lhe dizer. E também não paguei a conta – a sua irritação dissolveu-se num sorriso. – Bom, terei de voltar lá agora mesmo, para emendar o meu erro. E para me redimir. Certamente, pensará que sou um pateta. Espera-me no White’s.
Afastou-se tão depressa, que Blakesly teve de correr para o alcançar.
– Espera, Ev! A loja já deve estar fechada.
Evan desembaraçou-se da mão do amigo. Nem sequer ele próprio podia explicar aquele impulso irresistível, para ver novamente madame Emilie.
– É impossível que já se tenha ido embora. Acabámos de sair e ela tinha mais clientes para atender. Vai indo para o White’s, que eu irei de seguida.
Brent deixou-se ficar para trás, rindo-se entredentes.
– Não preciso que me digam quando estou a mais. Está bem, esperarei por ti – gritou, – mas não digas que não te preveni, se a única coisa que puderes tentar seduzir for uma porta fechada.
Emily Spenser suspirou, enquanto via sair a sua última cliente. A senhora Wiggins podia ser uma nova-rica, propensa a coscuvilhar, contudo, pelo menos, as suas raízes de classe média induziam-na a pagar as suas contas a tempo e horas. Ao contrário da maioria dos nobres que frequentava o seu estabelecimento.
Emily deixou-se cair na cadeira, diante da sua pequena escrivaninha, e tirou uma bolsa onde guardou o dinheiro da senhora Wiggins. Podia ouvir Francisca a cantarolar em português, enquanto punha a mesa para o chá, no andar de cima. Talvez uma bebida quente lhe acalmasse os nervos.
«Não tanto como meia dúzia de clientes com dinheiro à vista», lamentou-se. Preferia, de longe, as moedas tilintantes aos olhares ardentes do último cavalheiro. De facto, desejava com ardor que lady Cheverley tivesse ido buscar a sua aquisição, pessoalmente. Apesar de pertencer à nobreza, pagava sempre contra a entrega.
Mesmo assim, o filho de lady Cheverley surpreendera-a. Pela beleza quase juvenil da mãe, Emily esperara ver um adolescente e não o cavalheiro alto e corpulento que praticamente enchera o seu pequeno escritório, diminuindo-a a ela e ao seu ambiente, enquanto os seus olhos, de um azul-marinho, insinuavam prazeres nada juvenis.
«Um homem realmente muito atraente», reconheceu, «para quem seja sensível a esse tipo de atributos». E, é claro, ela não era. Mesmo assim, uma imagem repentina do brilho intenso daqueles olhos provocou-lhe um estremecimento nas costas. Um estremecimento que era um eco fraco de... Negou-se a dar um nome à sensação que se apropriara dela, quando lorde Cheverley olhara para ela pela primeira vez e quando lhe tocara na manga com naturalidade.
Em qualquer caso, devia desconfiar daqueles olhares. Precisava de ser paga pelo seu trabalho e evitar outra dose de insinuações degradantes, que ouvia da boca de outros nobres como ele. Embora dominasse a arte de mascarar a sua indignação e passar, graciosamente, por cima de tais comentários, sentia-se ofendida com aquelas ofertas veladas.
Voltou a fixar os olhos no livro de contas. Uns números elegantes registavam as somas necessárias para o feltro, a palha, a renda, os adornos de penas, as borlas de seda, a fita de cetim e os bordados. Ao calcular a quantidade necessária para manter a chapelaria a funcionar, não imaginara uma clientela de pessoas elegantes, mas pouco propensas a pagar aos seus costureiros.
Bom, tinha de reduzir os gastos. Não sobrevivera a longos meses de amargura, numa aldeia portuguesa, a ver Andrew a morrer aos poucos, e a um ano a pintar retratos de aristocratas por toda a Espanha, para sucumbir ao desespero, uns meses depois de regressar a Inglaterra.
Conseguiria ganhar dinheiro suficiente para pagar ao tutor de Andrew e economizar para a sua formação na universidade. Drew, a melhor e mais bonita lembrança da sua vida com Andrew. A imagem do rosto do filho, com o brilho travesso dos seus olhos verdes, idênticos aos do pai, suavizou a sua aflição e travou a onda de desconsolo, substituindo-a por um desejo agridoce.
Com resignação, reprimiu-o. Era impossível estar com ele, sabia isso. O filho de um aristocrata, que um dia regressaria à sua vida entre a aristocracia, não podia viver num andar, por cima de uma loja. Repetia isso a si mesma, todos os domingos, depois de uma visita rápida à casa luxuosa do tutor dele, o padre Edmund, que quase não suavizava a dor da separação.
«O melhor que posso fazer», pensou com determinação, «é desprezar este sentimentalismo e concentrar-me na minha tarefa, ou seja, assegurar a sua sobrevivência, economizar e manter Drew longe de ameaças, que me priva até daquelas poucas horas com ele».
O som da sineta da porta interrompeu-a. Embora não se tivesse dado ao trabalho de trancar a porta, já passava da hora de fechar e interrogou-se qual das suas clientes quereria fazer-lhe uma visita tardia. «Com sorte, uma cliente com os bolsos cheios de moedas», pensou, enquanto desenhava no rosto um sorriso de boas-vindas.
Antes de ter tempo de sair do escritório, uma figura corpulenta entrou nele. O seu sorriso desapareceu.
– Senhor Harding – disse com frieza, – o seu patrão necessita de alguma coisa? Ainda falta uma quinzena para o próximo pagamento da renda.
– Boa tarde, senhora – rechonchudo, de estatura baixa e ombros largos, Josh Harding aproximou-se dela a passo lento. Emily foi recuando, até bater na sua mesa. A lascívia insolente de Josh Harding ao olhar para ela, deliberadamente, de cima a baixo, despertou nela um desejo intenso de lhe dar uma bofetada.
– Não, ainda não é o dia de pagar a renda, mas como é uma mulher de negócios – Harding deu um tom de troça à palavra, – deve saber que manter um estabelecimento aberto requer outros gastos. Para ter proteção contra gentalha capaz de roubar lojistas honrados, por exemplo.
Emily pensou na bolsa de moedas que estava em cima da secretária, atrás de dela.
– Ah, sim? Tinham-me garantido que este bairro era tranquilo. Certamente, a renda da loja reforça essa ideia. Será que o seu patrão estava a fingir, ao afirmar isso?
O senhor Harding sorriu, deixando ver um buraco entre os dentes irregulares e amarelados.
– Mesmo em bairros elegantes, as pessoas necessitam de proteção. O meu chefe quer certificar-se de que a recebe... Em troca de uma pequena quota, claro. Digamos, mais dez libras por mês.
– Dez libras...! – exclamou Emily. – Isso é absurdo! Se realmente precisar de proteção, prefiro pegar na pistola do meu falecido marido e defender-me sozinha, a pagar esse preço. Agradeça ao seu patrão pela sua amável oferta, mas não posso permitir-me a isso.
– Talvez não possa permitir-se a estar desprotegida – Harding aproximou-se da mesa de trabalho de Emily e esticou o braço para acariciar o cetim e o veludo de um chapéu inacabado. Emily reprimiu a ordem de que afastasse as mãos sujas. – Às vezes, acontecem coisas... Às pessoas que não têm proteção. Soube o que aconteceu ao atelier de costura de Fiddler’s Way? Na semana passada, ardeu até aos alicerces. A proprietária perdeu tudo. Também pensou que a proteção era excessivamente cara. É muito menos do que começar de novo, diria eu.
Emily ficou rígida.
– E eu diria que aquilo que me propõe se chama extorsão.
O senhor Harding encolheu os ombros.
– Nunca fui muito bom com as palavras – olhou-a diretamente nos olhos. – Será melhor lembrar-se do atelier de costura, senhora.
Emily cerrou os lábios. Quase não podia suportar as despesas... Pagar mais dez libras seria impossível. Além disso, aquilo era claramente ilegal. Como se atrevia aquele monstro a intimidá-la?
Endireitou-se e virou-se para ele. Estava encostado à mesa de trabalho, a observá-la, com um sorriso de troça nos lábios. A ira corou as faces de Emily.
– Diga ao seu chefe que não posso permitir-me a ter a sua... Proteção. Diga-lhe também que este tipo de ameaças é ilegal e que irei às autoridades, caso persista.
Perante a sua fúria, o sorriso de Harding ampliou-se.
– Se fosse a si, não faria isso, senhora. O senhor Harrington conhece muita gente poderosa. Como acha que conseguiu comprar tantas casas nos arredores, onde todos os nobres gastam dinheiro? – com os olhos pequenos a brilhar, voltou a aproximar-se dela. – Não tenha medo, madame. Em casos especiais como o seu, o velho Josh tem outra oferta. Seja carinhosa comigo e falaremos dessas dez libras por mês.
Humedeceu os lábios e agarrou-a com um braço carnudo. Emily sentiu o fôlego desagradável no rosto. Apoiou-se na mesa e empurrou-o.
– Tire as mãos de cima de mim, senhor Harding. Reserve as suas ameaças para as prostitutas de Covent Garden.
Harding continuou a agarrá-la e o seu olhar tornou-se desagradável.
– Acha-se boa demais para um tipo como eu? Prefere um desses cavalheiros elegantes, que andam sempre a rondá-la? Estive a observá-la e nenhum deles ficou a fazer-lhe companhia. Nem ficarão, assim que puserem os olhos nisto – mostrou o punho fechado da mão que tinha livre. – Portanto, pode começar a ser mais carinhosa, madame.
Apertou-a com brusquidão contra o peito e colou a boca grande e húmida à dela. Com a língua, tentou abrir-lhe os lábios firmemente cerrados e levantou uma mão para o peito dela, roçando o mamilo com os dedos.
Ultrajada, Emily empurrou-o com todas as suas forças e conseguiu fazê-lo retroceder o suficiente para se preparar para lhe dar uma bofetada.
Harding adiantou-se. Agarrou-lhe na mão levantada e imobilizou-a. Os olhos cintilavam, a respiração acelerou e proferiu uma gargalhada quase gutural.
– Querida, nem sequer sabe fazer isto – antes que Emily tivesse tempo de reagir, deu-lhe uma palmada na boca.
A pancada impulsionou-a contra a secretária e bateu com a anca na superfície de carvalho. Um fio de sangue escorria-lhe do lábio ferido. Assustada, mas furiosa, procurou alguma coisa que lhe servisse de arma. Fechou os dedos em torno do tinteiro de vidro pesado, arrastou-o até às suas costas e endireitou-se para encarar Harding.
Ele estava a afastar-se, indiferente. Depois de dar dois passos, deteve-se para fazer uma vénia exagerada.
– Pense nas minhas ofertas. Nas duas. Porque asseguro-lhe, madame, que os seus problemas mal acabam de começar.
Um homem entrou na chapelaria e parou.
– Madame Emilie?
Com a mão fechada em redor do tinteiro, Emily virou-se para a porta. Naquele instante, em vez de um dos paus-mandados de Harding, viu uma figura cuja roupa elegante proclamava a sua origem nobre, enquanto o seu cérebro registava o sotaque culto daquela voz. No momento seguinte, reconheceu o filho de lady Cheverley e o alívio apoderou-se dela.
– Desculpe, não sabia que tinha um cliente – disse, olhando com receio para o senhor Harding.
Tentando esconder o ferimento no rosto, Emily soltou o tinteiro e tentou recuperar a compostura.
– Não... Não faz mal, lorde Cheverley. Este senhor já estava de saída.
Depois de submeter o nobre a uma observação atenta, durante a qual se devia ter apercebido da sua superioridade em estatura e força, Harding cerrou um punho em atitude desafiante.
– Irei quando me apetecer, madame. Quando me apetecer.
Cheverley olhou friamente para o punho de Harding e para o rosto corado.
– Penso que a senhora lhe pediu para se ir embora. Imediatamente.
Durante um momento, os dois homens olharam-se nos olhos. Depois, Harding encolheu os ombros e abriu a mão.
– Não importa. Lembre-se, quando todos os janotas desaparecerem, Josh Harding estará aqui – afastou-se com passo lento em direção à porta e inclinou a aba do chapéu com ar de gozo. – Dou-lhe a minha palavra, madame.
– Estava a importuná-la? – lorde Cheverley caminhou para ela, enquanto a porta da loja se fechava atrás de Harding. A dois passos de distância, deve ter reparado que tinha o lábio a sangrar, porque parou de repente. – Aquele vilão bateu-lhe? Por amor de Deus, vou matá-lo! – girou sobre os calcanhares.
Emily agarrou-o pela manga.
– Por favor, milorde, não lhe diz respeito. Deixe-o ir.
Lorde Cheverley ficou quieto. Emily podia sentir a tensão dos músculos sob os dedos. A fragrância a espuma de barbear e homem quente invadiu-lhe os sentidos e teve uma visão súbita e vertiginosa do poder contido daquele corpo a abater-se sobre ela. Durante uns instantes, sentiu-se quase... Protegida. Como com Andrew.
Recordações amargas afloraram à sua mente e a mão com que o agarrava afrouxou.
Abanou a cabeça, reprimiu os sentimentos que lutavam por sair e tentou dizer algo racional.
– De... Desejava mais alguma coisa? O chapéu não era do seu agrado?
– Deve permitir que o alcance! – Cheverley afastou-se, para se soltar. – Não posso consentir que o insulto daquele descarado fique impune.
– Só estava a transmitir-me uma mensagem do patrão... Embora com bastante crueldade, reconheço, mas os meus problemas não são um assunto seu. Em que posso ajudá-lo, milorde?
– Não devia ser eu a fazer-lhe essa pergunta?
Emily abriu os lábios para se explicar, mas depois voltou a fechá-los. Há tanto tempo que suportava o peso das preocupações sozinha, que se sentiu tentada a confiar os seus problemas àquele desconhecido, aparentemente forte, inteligente e interessado. «É um desconhecido», disse a si mesma. «Não é Andrew.»
– Por acaso, o patrão daquele homem está a ameaçar prejudicar o seu negócio?
Emily hesitou. «O conde de Cheverley não pode sentir qualquer interesse verdadeiro por mim. Salvo...», pensou, ao recordar a evidente admiração do rosto dele, minutos antes, o mesmo que Harding tinha expresso com tanta brutalidade. De imediato, desprezou aquela ideia degradante.
Claro que lorde Cheverley podia ser magistrado do seu condado. Talvez pudesse arriscar-se e pedir-lhe aconselhamento legal. Ergueu o olhar e surpreendeu-o a sorrir.
– Venha, depois de um encontro tão angustiante, devia sentar-se – agarrou-a por um braço, com hesitação. Soltando um suspiro, Emily permitiu que a conduzisse a uma cadeira. – Agora, permita-me que a ajude – como não havia outra cadeira no escritório minúsculo, lorde Cheverley indicou um espaço na mesa. – Posso?
Perante aquela atitude solícita, o receio de Emily dissipou-se. Assentiu, esperou que ele se sentasse e fez um resumo da sua conversa com o senhor Harding.
– Não sei se falava em nome do patrão. Talvez a extorsão seja a sua forma de aumentar os rendimentos e o senhor Harrington se alarmasse, se soubesse.
– Talvez – lorde Cheverley franziu o sobrolho, com ar pensativo. – Em ambos os casos, expressaria a sua indignação. Por outro lado, se ele estiver implicado, um confronto direto poderia causar um dano imediato da mesma índole do que acaba de sofrer. Não deve correr esse risco.
– Terei de correr. Não posso pagar-lhe e, certamente, não desejo... Enfim, terei de resolver o problema em algum momento. Quanto mais depressa, melhor.
– Não tem família, de preferência rica em corpulência e recursos, que possa ocupar-se deste assunto?
Na sua agitação, aquela pergunta trouxe recordações. Uma pontada de dor e frustração fez-lhe estremecer o corpo e, por um momento, foi incapaz de articular uma palavra. Apesar dos seus esforços, uma lágrima escapou por entre as pestanas.
– Ninguém – conseguiu sussurrar.
– Querida senhora, não se inquiete! – Cheverley inclinou-se para a frente, com a testa franzida. – Eu ocupar-me-ei disto, pessoalmente. O meu notário investigará esses senhores e reunirá alguns guardas para vigiarem a sua loja. Duvido que esse covarde se atreva a dar um passo, se houver homens capazes a protegê-la – quando Emily começou a protestar, sossegou-a com um gesto. – Nada disso. Não podemos permitir que uns bandidos andem por aí a ameaçar cidadãos honrados. Além disso, a minha mãe insistiria, porque a tem em grande estima. Assim como eu.
– Mas, mal me conhece...
– Tudo o que precisava de saber sobre si, soube-o no momento em que a olhei nos olhos.
A sua voz grave vibrava de emoção. Incomodada pelo seu escrutínio, Emily virou-se.
– Não me interprete mal, não quero parecer ingrata, mas... – corou. – Não posso permitir-me a pagar ao seu notário e, muito menos, contratar os serviços de alguém. E o senhor Harding sabe disso.
Cheverley ignorou o protesto com um gesto.
– Não dê mais voltas ao assunto, pois eu ocupar-me-ei de tudo.
– Não entende! – sentindo-se cada vez mais humilhada, Emily viu-se obrigada a explicar: – Receio que os lucros deste negócio estejam demasiado sobrestimados – conseguiu esboçar um sorriso fraco. – Nem sequer posso prever quando terei recursos suficientes para lhe pagar.
Cheverley devolveu-lhe o sorriso. Apesar da sua angústia, Emily notou que tinha um sorriso cativante, que formava covinhas junto dos lábios finos e acendia uma faísca atrevida nos olhos de um azul intenso.
– Limpar as ruas daquele verme é um dever cívico. E como sem dúvida saberá, sou um homem rico. Não pense mais nisso.
– Não posso ficar em dívida com...
– Por favor – pôs-lhe um dedo sobre o lábio que estava a sangrar. – Seria uma honra para mim, protegê-la.
Emily devia ter protestado mais, mas o toque do dedo de lorde Cheverley confundiu-lhe os pensamentos. Permaneceu sentada, muda, enquanto ele deslizava um dedo enluvado pela curva do seu lábio inchado.
O toque suave da luva sobre a sua pele ferida enfeitiçou-a e espalhou ondas de desejo por todo o corpo. Ergueu os olhos surpreendidos para os dele.
O dedo interrompeu a carícia. Cheverley conteve o fôlego e olhou para ela nos olhos, com tanta intensidade que Emily se sentiu mais perto dele, fisicamente. O pulso firme daquele dedo quente palpitou contra o lábio dela.
Quando, finalmente, ele retirou a mão, a única coisa que conseguiu balbuciar foi:
– Milorde... Manchou a luva.
Cheverley contemplou a mancha de sangue e levou a luva aos lábios, para a beijar.
– Guardá-la-ei como um tesouro. Não se preocupe, senhora, esse canalha não voltará a incomodá-la. Dou-lhe a minha palavra.
Evan assobiava, enquanto descia a rua, mais uma vez, com passo apressado. Inspirou fundo, ainda com a lembrança do aroma cativante da lavanda e os sentidos aguçados pela euforia de agarrar naquele braço esbelto e de tocar naqueles lábios delicados.
Arrancaria o seu notário da sua mesa de chá, para se certificar de que reunia os guardas imediatamente. Só de pensar que aquele rufia repugnante podia aproximar a mão suja do rosto perfeito de madame Emilie, sentia uma fúria abrasadora. Voltaria, pessoalmente, para se certificar de que os guardas estavam nos seus postos, naquele mesmo dia.
«Contudo, não devia zangar-me tanto com o tipo que me proporcionou a oportunidade perfeita para fazer de cavaleiro andante», disse a si mesmo, enquanto a fúria diminuía. Sem dúvida alguma, a divina madame Emilie passaria a vê-lo com bons olhos, pela sua intervenção. Se era assim tão virtuosa, certamente, imaginaria uma forma de o recompensar pela sua preocupação, uma forma que poderia ser imensamente gratificante para ambos.
Claro que nem sequer insinuaria tal possibilidade. Se o fizesse, estaria a relegar-se à mesma categoria do vulgar senhor Harding. Em geral, o conde de Cheverley só tinha de expressar o seu interesse, para que a dama escolhida se apressasse a agradar-lhe. No entanto, a incrivelmente bela madame Emilie mostrava-se pouco inclinada a aceitar a sua proteção, apesar do perigo real que a ameaçava. Lembrou-se do olhar ardente e do toque abrasador dos dedos dela. Era altiva, embora, ao mesmo tempo, não lhe fosse imune.
«Conquistá-la não será fácil», reconheceu, com o instinto picado pela tentação. No entanto, depois de a seduzir, não podia imaginar uma tarefa mais agradável do que tirar todo o peso daqueles ombros magros e proteger aquele corpo delicioso.
Uma casinha discreta em Mayfair, talvez? Com móveis elegantes, criados fiéis, vestidos, joias, carruagens... Tudo o que ela desejasse. Moveria o céu e a terra para satisfazer todos os seus caprichos. Imaginava-a enfeitada com ametistas e um vestido cor de ameixa, a condizer com os seus olhos. Também se imaginava a despi-la...
Sentiu um formigueiro de expectativa nas veias e um formigueiro de outro tipo, mais abaixo. Há meses que não se sentia tão cheio de vida, tão ansioso.
Arranjar-lhe-ia proteção, claro, quer ela lhe concedesse os seus favores de imediato, quer não. «Porém, mais tarde ou mais cedo», prometeu a si mesmo, «irá conceder-mos».