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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2006 Anne Kristine Stuart Ohlrogge. Todos os direitos reservados.

FRIO COMO O GELO, Nº 174 - agosto 2012

Título original: Cold as Ice

Publicada originalmente por Mira Books, Ontario, Canadá.

Publicado em português em 2009

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-0620-7

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

 

 

Um

 

Genevieve Spenser ajustou os seus óculos de sol de quatrocentos dólares, arranjou o seu penteado perfeito e entrou na lancha a motor. Depois de um Inverno longo e gélido em Nova Iorque devia estar preparada para o sol brilhante das Caraíbas, contudo, infelizmente, não estava com humor para o apreciar. Em primeiro lugar, não queria estar ali. A firma de advogados Roper, Hyde, Camui and Fredericks concedera-lhe seis semanas de férias e a sua intenção era passá-las na selva da Costa Rica, sem maquilhagem, sem saltos altos, nem lentes de contacto. Estivera tão ansiosa por se livrar disso tudo, que a última tarefa que a firma lhe atribuíra lhe parecia um trabalho horrível em vez da questão tão simples que era.

As Ilhas Caimão ficavam a caminho da América Central... Mais ou menos. Mais um dia não faria diferença alguma. Para além disso, que mulher de trinta anos, solteira e apaixonada, se recusaria a passar algum tempo com o homem que a revista People considerara o mais sexy do ano? Harry Van Dorn era arrebatadoramente atraente e encantador e a firma que representava a Fundação Van Dorn precisava que ele assinasse alguns documentos. Era uma oportunidade perfeita para todos, incluindo para ela.

Genevieve não concordara, porém, ficara de boca fechada. Aprendera o valor da diplomacia e do tacto nos últimos anos, desde que Walt Fredericks a contratara.

Levava o seu fato cinzento da Armani e os sapatos Manolo Blahnik de setecentos dólares que comprara. Uns sapatos que lhe davam umas dores terríveis nos pés e que faziam com que ficasse mais alta do que a maioria dos homens. Quando os levara para casa, olhara para o preço na etiqueta e desatara a chorar. O que acontecera à jovem decidida a dedicar a sua vida a ajudar os outros? O que acontecera à mulher que queria lutar pelas causas perdidas e que gastava o seu dinheiro nos mais necessitados, em vez de o esbanjar em roupa de marca?

Infelizmente, sabia muito bem qual era a resposta, no entanto, não ia analisá-la. Na sua vida controlada aprendera a não olhar para trás. Os sapatos eram lindos e merecia tê-los. Calçara-os para se encontrar com Harry Van Dorn como parte da sua armadura protectora.

Dificultaram-lhe a tarefa de embarcar na lancha, contudo, conseguiu fazê-lo com um mínimo de elegância. Odiava barcos. Raramente tinha náuseas, contudo, sentia-se sempre presa quando estava no mar. Conseguia ver a forma impressionante do iate de Van Dorn no horizonte. Parecia mais uma mansão do que um barco. Talvez conseguisse ignorar que estavam rodeados de água e fingir que se encontravam num restaurante de categoria. Tinha facilidade para ignorar as circunstâncias desagradáveis. Aprendera que essa era a melhor forma de sobreviver.

Para além disso, o seu trabalho só devia demorar algumas horas. Deixaria que Harry Van Dorn a tratasse com atenção com um almoço, pedir-lhe-ia que assinasse os papéis que levava na sua elegante pasta de pele e enviá-los-ia para Nova Iorque. Era absurdo sentir-se tão nervosa só por umas horas. Estava um dia demasiado bonito para deixar que um mau presságio obscurecesse o sol radiante das Caraíbas.

Levava os seus calmantes na mala. A tripulação de Van Dorn ia acomodá-la e servir-lhe um copo de chá gelado. Só tinha de tomar um comprimido. Pensara em deixá-los em Nova Iorque, pensando que não precisaria deles na selva tropical, porém, por sorte, mudara de ideias à última da hora.

Genevieve já estivera em outros iates... A sua firma era especializada em tratar de assuntos legais de muitas organizações de caridade e ela deixara o seu trabalho como advogada de defesa para se dedicar ao direito privado com a esperança de aproveitar os restos da sua consciência social. Tivera uma desilusão amarga ao comprovar que essas organizações serviam apenas para os ricos poderem fugir aos impostos e que gastavam tanto dinheiro em comemorações aos doadores como nas obras de caridade, porém, quando se apercebera disso, já era demasiado tarde.

O palácio flutuante de Van Dorn, o Sete Pecados, era muito maior do que qualquer iate que alguma vez vira. Pertencia à Fundação Van Dorn, não a Harry... um bonito modo de redução fiscal.

Subiu a bordo, balançando sobre os seus saltos de três centímetros e meio, e observou o convés com uma expressão impassível. Com um pouco de sorte, Harry Van Dorn estaria demasiado ocupado a jogar minigolfe para querer perder tempo com uma advogada que não era mais do que a mensageira da Roper, Hyde, Camui and Fredericks.

Esboçou o seu sorriso mais profissional e entrou numa sala enorme, decorada a preto e branco e com imensos espelhos que faziam com que parecesse ainda maior. Já se vira ao espelho naquela manhã, contudo, mesmo assim, examinou o seu reflexo. Uma mulher com trinta anos de cabelo loiro comprido e um fato cinzento impecável que ocultava sete quilos a mais não seria do agrado da sua empresa. Também não eram do agrado de Genevieve, no entanto, nenhuma dieta ou exercício físico conseguira eliminá-los.

– Menina Spenser?

Demorou algum tempo a ajustar a vista à luz ténue da sala e mal conseguiu ver a forma imprecisa de um homem. A voz dele tinha uma ligeira pronúncia britânica, de modo que não podia tratar-se de Harry. Harry Van Dorn era do Texas.

O homem deu um passo para ela.

– Sou Peter Jensen, o assistente pessoal do senhor Van Dorn. Pediu-me que lhe pedisse para aguardar um momento. Enquanto espera, posso oferecer-lhe alguma coisa para que se sinta mais confortável? Uma bebida, talvez? Um jornal?

Era um homem de aspecto insípido e insignificante, com cabelo preto e óculos. Alguém que lhe teria passado totalmente despercebido na rua.

– Pode ser um chá gelado e o New York Times, se for possível – disse, sentando-se numa poltrona de pele e deixando a sua pasta junto dela. Cruzou as pernas e observou os seus sapatos. Valiam cada centavo que tinham custado, tendo em conta o que faziam às suas pernas longas.

Levantou o olhar e viu que Peter Jensen também estava a observá-los, contudo, desconfiou que só estava interessado nos sapatos. Não parecia o tipo de homem que se interessasse pelas pernas de uma mulher, por muito atraentes que fossem.

– É claro, menina Spenser – disse ele. – Fique à vontade, por favor.

Desapareceu em silêncio, como se fosse um fantasma, e Genevieve tentou afastar uma sensação de desconforto. Sentira a desaprovação daquele homem, que certamente imaginara o preço dos seus sapatos. Normalmente, as pessoas ficavam impressionadas. Entrara numa loja caríssima de Park Avenue e as empregadas tinham-se apressado a atendê-la, sabendo que uma mulher que calçava uns sapatos tão caros não hesitaria em gastar uma fortuna em roupa.

E assim fizera.

Genevieve endureceu quando um homem entrou na sala e pensou que era novamente Peter Jensen, porém, quem entrou foi um empregado de farda com um copo alto com chá gelado e um exemplar do New York Times. Na bandeja, também havia uma caneta.

– Para que é isto? – perguntou. Teriam pensado que não era suficientemente profissional para levar a sua própria caneta?

– O senhor Jensen pensou que talvez gostasse de fazer as palavras cruzadas do jornal. O senhor Van Dorn está a tomar banho e talvez se atrase um pouco.

Como sabia aquele homem que ela gostava de fazer as palavras cruzadas? E com uma caneta? As palavras cruzadas de sábado eram as mais difíceis de toda a semana. Genevieve não hesitou nem um instante. Por alguma razão, sentia que Peter Jensen a desafiara e, embora estivesse cansada e desejosa de estar em qualquer outro lado menos ali, decidiu fazer o passatempo para se abstrair de tudo o que a rodeava.

Estava a acabar de as fazer quando uma das portas da sala se abriu e uma figura alta apareceu. Genevieve deixou o jornal e levantou-se muito dignamente. No entanto, a sua dignidade desapareceu assim que a figura avançou e ela viu que era Peter Jensen outra vez. O homem olhou para o jornal dobrado e Genevieve soube que os seus olhos inexpressivos tinham localizado as casinhas em branco das palavras cruzadas.

– O senhor Van Dorn vai recebê-la agora, menina Spenser.

Já estava na hora, pensou. Peter afastou-se para a deixar passar e ela ficou espantada ao aperceber-se da sua estatura imponente. Genevieve media mais de um metro e oitenta com os seus saltos altos, porém, ele continuava a ser muito mais alto do que ela.

– Enigma – murmurou.

– Desculpe?

– A palavra que falta é «enigma».

Claro que sim. Genevieve fez um esforço por controlar a sua irritação. Aquele homem irritava-a sem nenhum motivo aparente. No entanto, não teria de o aguentar por muito mais tempo. Conseguiria fazer com que Harry Van Dorn assinasse os papéis, conversaria amigavelmente se fosse necessário e regressaria ao aeroporto para apanhar o primeiro voo para a Costa Rica.

O sol cegou-a quando saiu para o ar livre. Genevieve olhou para o barco, um verdadeiro transatlântico, e seguiu Peter Jensen até Harry Van Dorn, o multimilionário mais sexy do mundo.

– Menina Spenser – disse com a sua pronúncia encantadora do Texas, levantando-se do sofá. – Lamento muito tê-la feito esperar! Veio até aqui só para me ver e eu deixei-a à espera enquanto tratava da papelada. Peter, porque não me disseste que a menina Spenser estava aqui?

– Lamento muito, senhor. Devo ter-me esquecido – disse Jensen num tom neutro, no entanto, Genevieve virou-se para lhe lançar um olhar fulminante. Porque não informara Van Dorn da sua presença? Para a irritar? Ou estaria Van Dorn a culpar o seu ajudante?

– Não faz mal – disse Van Dorn. Pegou na mão de Genevieve com uma expressão muito natural e fez com que entrasse no camarote. Sem dúvida, gostava de tocar nas pessoas enquanto falava. Fazia parte do seu carisma.

Infelizmente, Genevieve não gostava que lhe tocassem.

Contudo, um cliente era um cliente, por isso manteve o seu sorriso e deixou que a levasse para uma poltrona branca de pele, esquecendo-se do homem tão desagradável que a levara até ali.

– Não ligue a Peter – disse Harry, sentando-se muito perto dela. – Mostra-se muito protector comigo, pois pensa que todas as mulheres andam atrás do meu dinheiro.

– A única coisa que quero de si é que assine uns papéis, senhor Van Dorn. Não quero roubar-lhe mais tempo.

– Se não tivesse tempo para uma mulher bonita, seria digno de compaixão – disse. – Peter quer que só me dedique ao trabalho, mas eu penso que uma pessoa também precisa de se divertir. Receio que não goste muito de mulheres. Eu, pelo contrário, gosto demasiado. Você é realmente linda. Diga-me, de que signo é?

– Signo?

– O seu signo do zodíaco. Sou um homem supersticioso. Por isso dei o nome de Sete Pecados ao meu barco. O sete é o meu número da sorte. Já sei que tudo isso da new age não significa nada, mas eu gosto. Portanto peço-lhe que me perdoe. Suponho que seja Balança. Os melhores advogados são sempre Balança...

Na verdade, era Touro com ascendente em Escorpião. A sua amiga Sally fizera-lhe a sua carta astral quando fizera dezoito anos. Contudo, não tinha intenção de desiludir o seu cliente rico.

– Como é que adivinhou? – perguntou, fingindo um tom de admiração.

Harry soltou uma gargalhada quente e sensual e Genevieve começou a ver porque as pessoas o achavam tão encantador.

A revista People não mentira... Era muito bonito. Tinha um bronzeado espectacular, uns olhos azuis com rugas de expressão e uns cabelos loiros que o assemelhavam a Brad Pitt. Todo o seu físico irradiava uma aura de calor e de sexualidade, desde o seu sorriso enorme à sua musculatura poderosa. Era realmente atraente e qualquer mulher adoraria receber os seus cuidados. Embora, naquele momento, Genevieve não pudesse estar menos interessada nisso.

Porém, tinha um trabalho para fazer e uma das suas ordens tácitas era dar àquele cliente tão importante tudo o que desejasse. Não seria a primeira vez que pensava em ir para a cama com alguém por razões profissionais. Sabia muito bem que, no fundo, era uma pessoa pragmática. Evitara fazê-lo até então, contudo, mais cedo ou mais tarde, teria de ser menos meticulosa e mais prática. Se tivesse de ir para a cama com Harry Van Dorn para conseguir fazer com que assinasse os papéis e sair dali... Bom, já tivera de desempenhar outros trabalhos muito mais onerosos. Podia fazê-lo se fosse necessário.

No entanto, conhecia bem o jogo. Só iam tratar dos negócios depois da diversão e, com Van Dorn, isso podia levar horas.

– Não ligue a Peter – repetiu. – É Carneiro, nasceu a vinte de Abril, para ser exacto. Se não tivesse uma carta astral tão favorável não estaria a trabalhar para mim. É muito sério e aborrecido, mas faz muito bem o seu trabalho.

– Trabalha para si há muito tempo? – perguntou, perguntando-se quando iria Harry tirar a mão do seu joelho. Tinha umas mãos grandes e bem tratadas.

– Oh, há poucos meses. Não sei como consegui viver antes sem ele... Sabe mais sobre mim e sobre a minha vida do que eu. Mas já sabe como são os homens como ele... Tendem a ficar um pouco possessivos com os seus chefes. Ouça, não quero passar a tarde a falar sobre Peter. É tão interessante como ver a erva crescer. Vamos falar sobre si, minha querida, e sobre o motivo que a trouxe aqui.

Ela tentou agarrar na sua pasta, porém, ele cobriu-lhe a mão com a sua e riu-se.

– Esqueça os negócios. Temos muito tempo para tratar disso. Refiro-me aos motivos que a levaram a trabalhar numa firma como a Roper. Fale-me de si, dos seus gostos e prazeres e do que gostaria que o nosso chef preparasse para o jantar.

– Oh, não posso ficar. Tenho de apanhar um voo para a Costa Rica.

– Oh, mas não pode ir-se embora – replicou, imitando-a. – Aborreço-me muito aqui sozinho e sei que os seus sócios querem que me deixe satisfeito. Pois bem, só ficarei satisfeito a menos que possa ter a companhia de alguém durante o jantar. Os poços de petróleo não vão secar numa noite. Os papéis podem esperar. Prometo-lhe que assinarei esses papéis e que me certificarei de que chega à Costa Rica, embora não consiga imaginar porque quer ir para um sítio assim. Mas, antes disso, esqueça os negócios e fale-me de si.

Genevieve soltou a sua pasta e ele soltou-lhe a mão. Devia ter-se sentido incomodada, no entanto, Harry Van Dorn era como um cachorro inofensivo que só queria brincar. Bem, podia brincar com ele... desde que não quisesse esfregar-se contra a sua perna.

– Qualquer coisa que o chef queira fazer – respondeu.

– E para beber? Quer um Martíni de maçã?

Genevieve detestava qualquer tipo de Martíni, embora já tivesse consumido alguns nos eventos sociais que a sua firma patrocinava. Os de maçã eram os piores e toda a gente pensava que os adorava.

Contudo, ele era um dos dez homens mais ricos do Ocidente e devia ter tudo o que desejasse.

– Tab – disse.

– Tab? – repetiu, aparentemente desconcertado. – O que é isso?

– Um refrigerante dietético. Não me refiro àquela bebida energética horrível... Mas não interessa. Estava a brincar. Aceito o mesmo que o senhor tomar.

– Tolices. Peter! – mal teve de elevar o tom de voz para que o seu assistente entrasse silenciosamente na sala. – Preciso que arranje um refrigerante dietético chamado Tab. Parece que é o que a menina Spenser gosta de beber.

Os olhos inexpressivos de Jensen pousaram sobre ela.

– É claro, senhor. Pode demorar um pouco, mas tenho a certeza de que será possível encontrá-lo.

– Óptimo. E quero que seja o original... não uma imitação barata. A menina Spenser vai ficar para jantar. Diz ao chef que quero que prepare a sua especialidade.

– Receio que o chef se tenha ido embora, senhor.

Aquela resposta foi o suficiente para apagar o sorriso encantador do rosto de Harry.

– Não digas tolices. Há anos que trabalha para mim! Não seria capaz de fazer isso.

– Lamento muito, senhor. Não sei se as suas razões seriam profissionais ou pessoais. Só sei que se foi embora.

Harry abanou a cabeça.

– Isto é incrível! É o quinto empregado que desaparece sem me dizer nada.

– O sexto, senhor, se contar com o meu predecessor – murmurou Jensen.

– Quero que trates disto, Jensen – ordenou Harry com uma voz severa, porém, então recuperou o seu sorriso radiante. – Entretanto, tenho a certeza de que conseguirás encontrar alguém que substitua Olaf para fazer um jantar delicioso para a minha convidada e para mim.

– Certamente, senhor.

– Não quero causar-lhe mais problemas a meio de uma crise doméstica – interveio Genevieve. – Se assinar os documentos, poderei ir-me embora e...

– Nada disso – disse Harry. – Percorreu muitos quilómetros só para me ver... O mínimo que posso fazer é convidá-la para jantar. Trata disso, Peter.

Genevieve sentiu uma pontada de remorso ao ver como Jensen se afastava. Não havia forma de sair dali. Pelo menos, tinha a certeza de que Jensen conseguiria um Tab e um chef de luxo, pois era muito meticuloso e eficiente. Poucos minutos depois, Van Dorn começou a falar sobre o seu querido e velho pai com o seu encanto natural do Texas e ela recostou-se no assento a ouvi-lo atentamente. Talvez morresse de aborrecimento, contudo, havia formas piores de passar uma noite.

 

 

Peter Jensen era espantosamente eficiente, mesmo sob a aparência do ajudante perfeito. Demorara mais tempo do que o habitual a livrar-se de Olaf, ao ponto de temer que fosse necessário usar a força. Contudo, conseguira fazer com que o chef se fosse embora.

Também não se teria importado de usar a força. Fazia o que tinha de fazer e estava muito bem treinado. No entanto, preferia a subtileza à força bruta, que deixava marcas nos corpos e demasiadas perguntas. Finalmente, Olaf desaparecera, Hans estava preparado para ocupar o seu lugar e ambos estavam prestes a levar a cabo o seu plano.

Contudo, a rapariga era um problema. Devia ter imaginado que os advogados de Harry enviariam uma jovem bonita para o satisfazer. Sabiam tão pouco sobre os gostos sexuais de Harry, que nem se apercebiam de que qualquer mulher conseguia satisfazê-lo.

Os documentos que trouxera com ela eram outra questão. Seriam simplesmente uma desculpa ou seriam o indício de alguma coisa mais importante? Harry não parecera muito interessado no que a levara ali, porém, isso não era nada novo nele. Tinha de tirar aquela mulher do navio, e depressa, antes de pôr o seu plano em marcha. Iam receber a ordem nos próximos dias e não queria que uma civil se intrometesse e complicasse tudo. A missão era relativamente simples... Não era nada que não tivesse feito antes e era muito bom no que fazia. Contudo, o tempo era sempre fundamental. A menina Spenser estava a interpor-se no seu objectivo. Quanto mais depressa se livrasse dela, melhor. Era um homem que preferia evitar os danos colaterais e não ia modificar o seu método naquele caso, por muito importante que fosse a sua missão. Contudo, embora só conhecesse parte das actividades de Harry Van Dorn, sabia que pará-lo era uma missão crucial.

Sabia o que diziam dele nas suas costas. O Homem de Gelo. Tanto por causa do seu autocontrolo frio, como pela sua perícia especial. Era-lhe indiferente o que diziam dele, desde que conseguisse fazer o seu trabalho.

A menina Spenser teria de se ir embora antes que fosse demasiado tarde. Antes que se visse obrigado a matá-la.

Recordou o olhar penetrante dela atrás dos seus óculos escuros. Não devia ter mencionado a palavra das palavras cruzadas... Era um detalhe que ela poderia recordar se alguém começasse a fazer-lhe perguntas quando o trabalho estivesse concluído. Porém, não... Desempenhara bem o seu papel. Ela olhara para ele e não desconfiara de quem era realmente, por isso não devia ser nenhuma ameaça real. Era uma mulher bonita e inteligente e estaria de volta ao seu pequeno mundo antes que alguma coisa de mal pudesse acontecer-lhe.

Nunca saberia como estivera perto da morte.

 

 

Madame Lambert olhou pela janela do seu escritório junto de Kensington Gardens, em Londres.

Era uma mulher alta, esbelta e elegante, com uma pele cremosa e uns olhos frios que, naquele momento, procuravam algum sinal de vida nas árvores. Era Abril, altura em que a natureza renascia. No entanto, a poluição da cidade atrasava sempre a evolução natural das coisas. Por alguma razão, as árvores e os jardins próximos dos escritórios da Spence-Pierce Financial Consultants, Ltd. morriam facilmente. Se madame Lambert fosse uma pessoa mais romântica, pensaria que era uma reacção ao trabalho que desempenhavam no escritório. Spence-Pierce era apenas mais uma das dúzias de fachadas para o Comité, um grupo tão secreto que, mesmo sendo directora há mais de um ano, Isobel Lambert ainda estava a descobrir alguns dos seus detalhes mais obscuros.

Era Abril e o tempo estava a acabar. A Regra dos Sete estava em curso, dirigida pelo brilhante cérebro de Harry Van Dorn e os seus recursos ilimitados, e ainda não sabiam exactamente de que se tratava.

Sete desastres, planeados por Harry Van Dorn, para deixar o mundo num caos financeiro, que reverteriam em benefício do próprio Van Dorn. Contudo, os «quando», «onde» e «como» continuavam sem estar claros. Já para não mencionar os «quais»... Harry não podia estar a fazer tudo sem ajuda.

Fosse o que fosse, era letal e era obrigação do Comité impedir que esses desastres acontecessem, independentemente dos danos colaterais necessários para o sucesso da missão.

Tinha um mau pressentimento e aprendera a confiar nos seus instintos. Peter era o melhor homem que tinham. Um espião brilhante que nunca fracassara numa missão. No entanto, alguma coisa lhe dizia que isso estava prestes a mudar.

Abanou a cabeça e voltou para a sua secretária de cerejeira, ocupada apenas por um bloco de notas e uma caneta preta. Guardava toda a informação na sua cabeça, porém, às vezes precisava de escrever.

Rabiscou umas palavras e leu-as.

A Regra dos Sete.

O que raios estava Harry Van Dorn a planear?

Seria a sua morte o suficiente para impedir os seus planos?

 

 

Dois

 

O iate de Harry Van Dorn era tão grande, que Genevieve quase conseguia esquecer que estava rodeada de água. O cheiro do mar continuava a impregnar o ar, porém, adorava o oceano desde que não estivesse a bordo de um barco. Ali conseguia fingir que estava num falésia a ver as ondas, em vez de estar naquele iate luxuoso.

Harry Van Dorn era tão extravagante como encantador e concentrara todo o seu encanto pessoal nela. O seu sorriso letal, os seus olhos azuis brilhantes, a sua voz calma e a atenção exclusiva que lhe mostrava deviam ter feito com que se derretesse. No entanto, Genevieve não se derretia facilmente, nem sequer sob o sol ardente das Caraíbas, nem na companhia de um multimilionário que estava a fazer todos os possíveis para a seduzir.

Recebeu o seu Tab num copo com gelo, naturalmente. Sabia que devia ter pedido uma Pellegrino ou alguma coisa semelhante... A sua firma nunca aprovaria uma coisa tão mundana como um refrigerante, porém, naquele momento, devia estar a aproveitar as suas férias, portanto tirou os sapatos e esticou-se na espreguiçadeira para abanar os dedos dos pés ao calor do sol.

Também sabia como fazer apelar ao homem mais modesto dentro de Harry e ele não era precisamente tímido. Nunca lidara especificamente com a Fundação Van Dorn. Genevieve tratara sempre de assuntos corriqueiros de várias fundações menores, contudo, a visão que Harry tinha do mundo pareceu-lhe fascinante. Não era de estranhar que tivesse ganhado imensos prémios e menções humanitárias, sendo até nomeado para o Prémio Nobel da Paz. Os lucros das suas empresas no estrangeiro eram metade do que o habitual, pois recusava-se a empregar mão-de-obra infantil e exigia que os seus trabalhadores recebessem bons salários. Mesmo assim, tinha lucros, pensou Genevieve cinicamente, e aqueles salários tão generosos eram apenas uma parte mínima do que pagava aos empregados das fábricas americanas. Contudo, as organizações humanitárias ignoravam esses dados. Ou ignoravam, ou sabiam que conceder um prémio a um multimilionário era uma forma de atrair o seu capital para essas organizações.

O seu dinheiro vinha de todo o lado... Poços petrolíferos no Médio Oriente, minas de diamantes em África, investimentos tão complexos que nem ele mesmo devia entender. Ganhava dinheiro mais rapidamente do que conseguia gastá-lo e os seus gostos não podiam ser mais luxuosos.

No entanto, Genevieve conhecera muitos multimilionários nos últimos anos e, no final, todos eram iguais, mesmo alguém como Harry Van Dorn e as suas pequenas excentricidades. Ouviu-o a tagarelar com a sua pronúncia texana, dizendo para si mesma que devia relaxar, que no dia seguinte poderia tirar a sua armadura profissional e perder-se na selva da Costa Rica.

Acordou com um sobressalto. Harry continuava a falar e nem sequer parecia ter-se apercebido de que ela adormecera. Genevieve agradeceu estar de óculos de sol. Se Walt Fredericks descobrisse que a sua protegida adormecera à frente de um cliente não hesitaria em despedi-la. Embora houvesse sempre a possibilidade de que fosse precisamente isso o que ela queria.

Então apercebeu-se do que a acordara. Não fora a conversa de Harry, mas a sensação de que o barco estava a mexer-se.

– Porque estão os motores a trabalhar? – perguntou, interrompendo o discurso de Harry sobre as cartas do tarot.

– Estão? Não me tinha apercebido. Acho que os põem a trabalhar de vez em quando para ver se está tudo em ordem. Normalmente, só o fazem umas horas antes de zarpar, mas neste momento não tenho intenção de ir a lado nenhum. Deve ser alguma operação de manutenção.

Genevieve endireitou-se na espreguiçadeira. A explicação de Harry era razoável, contudo, ela não acreditou.

Calçou os seus sapatos caríssimos com uma careta de dor quase imperceptível e levantou-se.

– Não sabia que era tão tarde... Estava tão concentrada nas suas histórias – mentiu com a naturalidade que aperfeiçoara ao longo dos anos. – Preciso que assine estes papéis... Tenho de ir apanhar um avião. Tenho de estar na Costa Rica amanhã à tarde.

– Nada disso – replicou. – Vamos partilhar um bom jantar, vai passar aqui a noite e, amanhã, o meu jacto privado pode levá-la onde quiser.

– Não posso...

– Não pense que as minhas intenções são desonestas – disse, piscando-lhe um olho. – Na verdade são, mas a minha mãe ensinou-me a comportar-me como um cavalheiro. O iate tem sete camarotes, cada um com a sua própria casa de banho, e garanto-lhe que não há nada como dormir ao ritmo das ondas. Faz com que se esqueça de todas as suas preocupações.

– Não tenho nenhuma preocupação neste momento – mentiu outra vez. – E não quero incomodar.

– Não é incómodo nenhum. Tenho um jacto e um piloto sem nada para fazer... O piloto ia adorar ter a oportunidade de voar. Ele até pode esperar que acabe de tratar dos seus negócios e trazê-la de volta para aqui ou para Nova Iorque.

– Vou ficar seis semanas na Costa Rica, senhor Van Dorn.

– Ninguém me chama «senhor Van Dorn» – protestou. – Era o nome do meu pai. Por curiosidade, o que vai fazer seis semanas na Costa Rica?

– Vou explorar a selva – disse e esperou para ver a sua reacção.

Ele pestanejou algumas vezes e, por um momento, Genevieve perguntou-se quão profunda seria a sua dedicação humanitária.

– A Fundação Van Dorn sempre teve um papel activo nos assuntos do meio ambiente – disse. – Afinal de contas, só temos este mundo.

Ela não ia dizer-lhe que a sua escolha fora motivada pelo facto de, na selva, não ser fácil localizá-la e não por um instinto caridoso.

– Certamente – murmurou. – Mas preciso mesmo de ir...

– Peter! – mal elevou a voz, porém, Peter Jensen apareceu imediatamente. Devia ter estado escondido, à espreita. – Avisa o meu piloto e diz-lhe para preparar o jacto. A menina Spenser vai para a Costa Rica amanhã e quero que esteja confortável.

Ela abriu a boca para protestar, no entanto, voltou a fechá-la ao ver a expressão estranha de Peter Jensen. Tinha uma expressão inescrutável, era um enigma, pensou, recordando a palavra das palavras cruzadas.

– Se não é mesmo um incómodo... – disse, resignando-se a passar a noite no iate.

– Muito bem, senhor – murmurou Jensen num tom neutro.

– Preparem também uma cabina. Vai passar a noite aqui – disse e virou-se para Genevieve com um sorriso. – Vê? Tenho intenção de me comportar como um perfeito cavalheiro.

Por alguma razão, Genevieve ficou surpreendida e olhou para o assistente. Devia ter imaginado o toque de desprezo que viu nos seus olhos frios... Um bom empregado nunca denunciava as suas emoções e desconfiava que Peter era um excelente ajudante. Harry podia ter o melhor do melhor e ela já comprovara a eficácia e meticulosidade de Peter Jensen.

– Muito bem, senhor.

– Envia alguém para ir buscar a bagagem da menina Spenser.

– Receio que isso seja impossível, senhor. Encarreguei-me da sua bagagem quando fui a terra procurar um novo chefe de segurança... Pareceu-me o mais prudente na altura. A bagagem da menina Spenser foi enviada para a Costa Rica no seu voo previsto.

Prudente... Noutras circunstâncias, teria ficado zangado, contudo, a acção «prudente» de Jensen dava-lhe a desculpa de que precisava.

– Foi muito amável da sua parte, senhor Jensen. Parece que tenho de me ir embora, afinal de contas.

– Só estou a fazer o meu trabalho, menina Spenser – murmurou. – Vou tratar de tudo para que a lancha esteja pronta dentro de uma hora.

– Bom, podes esquecer a lancha – disse Harry. – A menina Spenser vai passar a noite aqui e não me digas que não há roupa adequada para ela a bordo, porque sei que há. Para além disso, é dia sete de Abril, e sabes muito bem que o sete é o meu número da sorte. Aposto que o seu aniversário é a sete de Outubro, não é, menina Spenser?

Genevieve perguntou-se de onde teria tirado uma hipótese tão absurda, contudo, recordou que o deixara pensar que era Balança. Desistiria de a reter ali se lhe dissesse que o seu aniversário era no dia quinze?

– É realmente incrível – disse com um sorriso.

– Receio que a roupa de mulher que temos seja de tamanho pequeno – disse Peter. – Como o senhor ordenou.

Genevieve não sabia o que a irritava mais, se o facto de Harry Van Dorn pensar que ela ia fazer tudo o que ele desejasse, ou a insinuação de Peter Jensen em relação ao seu peso.

– Eu uso o tamanho trinta e seis – disse. Na verdade usava o trinta e oito e, às vezes, até o quarenta, e desconfiava que com a roupa barata seria ainda pior. Porém, não ia admitir isso de forma alguma.

Jensen não pareceu céptico... Certamente sabia qual era o seu tamanho real, contudo, estava demasiado bem treinado.

– Meu Deus, Jensen, não somos assim tão formais – disse Harry. – Tenho a certeza de que conseguirás encontrar alguma coisa para ela – disse e virou-se outra vez para Genevieve. – Lembre-se de que é Carneiro. Teimoso até não poder mais, mas faz bem o seu trabalho. Enquanto eu, como Aquário, sou um homem de ideias. Normalmente não combino muito bem com as pessoas do signo Balança, mas confio que tenha um bom ascendente.

A única coisa ascendente nela era a sua impaciência, no entanto, não havia nada que pudesse fazer a esse respeito. Dado que trabalhava para ele, Harry podia esperar qualquer coisa que quisesse dela, por isso apertou os dentes e sorriu.

– Qualquer coisa serve – disse.

Peter Jensen assentiu, com o rosto tão impassível como sempre. Genevieve esperava que recuasse de costas, como um criado chinês da Idade Média, porém, em vez disso, virou-se e saiu. Genevieve ficou fascinada ao vê-lo a retirar-se. De costas, parecia muito diferente... Mais alto, mais esbelto, menos comum. Talvez fossem os óculos e o cabelo que faziam com que parecesse tão vulgar. Ou talvez ela precisasse mais de umas férias do que pensara, para estar a ter fantasias paranóicas com um assistente pessoal insípido.

Fosse como fosse, não tinha importância. Fora raptada por um texano encantador. Deixaria que Harry Van Dorn a tratasse com atenção e, no dia seguinte, estaria a caminho da Costa Rica.

Não iria para a cama com ele... Já decidira que não iria fazê-lo, embora não soubesse exactamente quando. Não estava com vontade de fazer nada, excepto fugir dali.

Tomaria alguns calmantes para atenuar a ansiedade que sentia por estar rodeada de água. No dia seguinte, àquela mesma hora, tudo aquilo seria uma lembrança distante.

 

 

Peter não estava contente. As coisas não estavam a correr como planeara, embora raramente corressem. Não contara com a presença de Genevieve Spenser, nem com o facto de Harry Van Dorn querer mantê-la ali como se fosse um brinquedo novo. Podia aproveitar-se dela em seu próprio benefício, contudo, não gostava da ideia. As complicações eram sempre um mal necessário, porém, ele era um homem que se desfazia delas. Teria de se livrar da menina Spenser antes que chegassem à ilha.

Quase nunca perdia tempo a tomar decisões. Era uma beleza espantosa, um inconveniente do qual teria de se livrar rapidamente. Genevieve Spenser era muito bonita e atraente, no entanto, era mais alguma coisa. Era mais inteligente do que queria aparentar e muito mais susceptível.

Aquela fúria interior que via nela era realmente fascinante. As mulheres que ele conhecia sabiam ocultar muito bem a sua raiva. Genevieve Spenser não parecia ter encontrado uma forma de o fazer e ele conseguia ver a raiva que escondia atrás da expressão calma dos seus olhos castanhos. Cabelo loiro e olhos castanhos... Era uma combinação muito interessante. Embora a cor natural do seu cabelo devesse ser castanho-claro.

Contudo, estava a pensar demasiado nela quando tinha trabalho para fazer. Hans estava na cozinha e Renaud estava na parte inferior do iate, certificando-se de que estivesse tudo pronto quando recebessem a ordem. Os outros cinco elementos da equipa tinham sido escolhidos pessoalmente por Isobel Lambert e eram quase tão eficazes e profissionais como ele. Tinham ocupado os seus novos postos sem dificuldade alguma. Harry Van Dorn não fazia ideia de que estava rodeado por membros do Comité.

Contudo, se Van Dorn fosse tão honesto como parecia ser, não fazia ideia do que era o Comité. Poucas pessoas sabiam, porém, Peter não acreditava que Harry fosse assim tão ignorante. O seu dinheiro e poder podiam comprar informação privilegiada.

Por alguma razão, estava impaciente.

Harry Van Dorn devia ter sido um assunto fácil de resolver. Um multimilionário megalómano, apreciador do ocultismo e com um plano para afundar a economia mundial.

O problema era que Harry tinha muita gente a trabalhar para ele em cada ramo do seu plano. Cada secção da Regra dos Sete funcionava de forma independente, por isso era extremamente difícil descobrir todos os detalhes dos desastres iminentes. Uma pista nunca conduzia a outra e o seu exército de subordinados não parecia ter consciência da existência dos outros exércitos. Peter só estava naquela missão há quatro meses... Um período relativamente curto quando comparado com o seu último trabalho como assistente pessoal de Marcello Ricetti, um traficante de armas siciliano, amante do sadismo e de rapazes jovens. Peter conseguira mantê-lo afastado dos meninos durante o ano que passara com ele, em troca de um preço muito elevado. Teria tido de pagar o mesmo preço de qualquer forma, contudo, não pensara duas vezes. Porém, no final, custara-lhe a perda da sua própria esposa.

Pelo menos não tivera de oferecer mais serviços pessoais a Harry Van Dorn. A personalidade assexual de Peter era uma grande vantagem para conseguir atingir os seus objectivos. Harry só queria que alguém velasse pelas suas comodidades. Ele mesmo podia tratar das suas necessidades sexuais.

Aquilo levava-o novamente a Genevieve Spenser. Talvez fosse melhor se fosse para a cama com Harry. Se ficasse sozinha na sua cabina, seria muito mais difícil impedir que Renaud lhe cortasse o pescoço.

Embora talvez não tivesse outro remédio... Era muito perigoso deixar que voltasse para Nova Iorque e que respondesse ao interrogatório sobre o desaparecimento de Harry Van Dorn e do seu iate. Um dano colateral, diria Thomason. Porém, Thomason fora substituído e Peter esperava que os métodos desumanos do Comité pudessem mudar com a nova direcção.

No entanto, as pessoas que sabiam demasiado eram sempre um problema. As drogas que tinham desenvolvido eram muito voláteis, pois podiam apagar demasiadas lembranças ou muito poucas. Não se podiam correr riscos quando havia tanto em jogo.

Embora talvez não fosse necessário fazê-lo. Talvez conseguisse tirá-la do barco... Ela parecia desesperada por se ir embora. Não seria muito difícil. Se o jacto de Van Dorn estivesse fora de serviço, teria de viajar num avião comercial, e seria muito fácil reservar um voo para o dia seguinte de manhã. Ela vira-o, sim, mas não se lembraria dele. Era um dos seus muitos talentos.

Estava a complicar tudo sem necessidade, apenas para proteger uma menina rica e mimada. Ela estava ali e podia ficar ali. Peter protegê-la-ia se pudesse. Se não fosse possível fazê-lo, certificar-se-ia de que tinha uma morte rápida e sem dor. Afinal de contas, nascer na riqueza não era um crime. Era apenas um pequeno delito moral.

 

 

A cabina parecia mais uma suíte de luxo do que um camarote. A cama de casal só ocupava uma quarta parte do quarto e tinha uma janela enorme, da qual conseguia ver o oceano.

Fechou as cortinas e tomou um duche, só pelo prazer de se mimar um pouco. Habituara-se facilmente às pequenas comodidades depois de uma infância difícil, cheia de carências e de dificuldades económicas, onde o mais importante fora manter as aparências. Quem teria imaginado que a pobre Genny Spenser acabaria tão mimada? O dinheiro que os seus antepassados tinham poupado desaparecera e a única coisa que restara fora a expectativa do luxo sem o dinheiro para o manter. No entanto, os seus pais nunca o tinham admitido e, em público, tinham continuado a ser os Spenser, situados socialmente acima daqueles que tinham de trabalhar para viver. Contudo, dentro de casa, com infiltrações de água e divisões totalmente vazias, não tinham tido outra hipótese senão comer macarrão com queijo enlatado e pouco mais.