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Sumário

Title Page

O Autor

A Feiticeira

A quadrilha de Jacob Patacho

Acauã

Amor de Maria

O Baile do Judeu

O Gado do Valha-Me-Deus

Tentação

About the Publisher

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O Autor

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Herculano Marcos Inglês de Sousa (na grafia arcaica, Herculano Marcos Inglez de Souza; Óbidos, 28 de dezembro de 1853 — Rio de Janeiro, 6 de setembro de 1918) foi um escritor, advogado, professor, jornalista e político brasileiro, tido como introdutor do naturalismo na literatura brasileira por meio do seu romance O Coronel Sangrado, publicado em Santos em 1877. Foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 28.

Inglês, que escreveu inicialmente com o pseudônimo Luiz Dolzani, ganhou reconhecimento literário após a publicação da obra O Missionário, no ano de 1891. Em suas obras, é perceptível a influência de escritores europeus, tais como Eça de Queirós e Emile Zola.

Também teve notável carreira política, começando como militante do Partido Liberal em 1878. Tendo sido eleito deputado provincial (equivalente aos atuais deputados estaduais) pela província de São Paulo, foi nomeado Presidente das províncias de Sergipe e do Espírito Santo. Foi também convidado várias vezes para integrar o Supremo Tribunal Federal, porém nunca aceitou.

Pouco antes de falecer, Inglês de Sousa foi eleito deputado federal pelo seu estado natal, o Pará, nas eleições nacionais de março de 1918.

Nascido no município paraense de Óbidos, Herculano Marcos Inglês de Sousa era filho do desembargador Marcos Antônio Rodrigues de Sousa e de Henriqueta Amália de Góis Brito, membros de tradicionais famílias paraenses. Herculano, que estudara inicialmente nos estados do Pará e Maranhão, graduou-se em direito, em São Paulo, pela Faculdade do Largo de São Francisco , no ano de 1876.

Inglês, que fundara diversos jornais e meios de comunicação, tornara-se secretário do Tribunal da relação do estado de São Paulo em maio de 1878 e posteriormente presidente de Sergipe e em seguida do Espírito Santo.

Publicou dois romances em 1876, O Cacaulista e História de um Pescador, aos quais seguiram-se mais dois, todos publicados sob o pseudônimo Luís Dolzani. Com Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e Silva publicou a partir de 1877 a Revista Nacional, versando sobre ciências, artes e letras.

Foi o introdutor do naturalismo no Brasil, porém seus primeiros romances não tiveram repercussão. A principal características de sua obra é o enfoque no homem amazônico, acima da paisagem e do exotismo da região.

Compareceu às sessões preparatórias da criação da Academia Brasileira de Letras (ABL), responsável pela fundação da cadeira 28, que tem como patrono Manuel Antônio de Almeida.

Do grupo fundador da ABL participou outro ilustre obidense, José Veríssimo, que, juntamente com Araripe Júnior, Artur de Azevedo, Graça Aranha, Guimarães Passos, Joaquim Nabuco, Lúcio de Mendonça, Machado de Assis, Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac, Pedro Rabelo, Rodrigo Otávio, Silva Ramos, Visconde de Taunay e Teixeira de Melo, realizaram a sétima e última sessão preparatória em 28 de janeiro de 1897.

Nesta sessão foram incorporados como membros aqueles que haviam comparecido às sessões preparatórias anteriores: Coelho Neto, Filinto de Almeida, José do Patrocínio, Luís Murat e Valentim Magalhães. Foram convidados para participar como fundadores, e aceitaram, Afonso Celso Júnior, Alberto de Oliveira, Alcindo Guanabara, Carlos de Laet, Garcia Redondo, Pereira da Silva, Rui Barbosa, Sílvio Romero e Urbano Duarte.

Tornou-se conhecido com O Missionário (1891), que, como toda sua obra, revela influência de Zola. Neste romance descreve com fidelidade a vida numa pequena cidade do Pará, revelando agudo espírito de observação, amor à natureza, fidelidade a cenas regionais.

Inglês de Sousa faleceu na capital da República e foi sepultado no Cemitério São João Batista no dia 7 de setembro de 1918 com "um dos maiores acompanhamentos de que há memoria", segundo registrou o jornal "O País" no dia seguinte.

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A Feiticeira

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Chegou a vez do velho Estêvão, que falou assim:

– O tenente Antônio de Sousa era um desses moços que se gabam de não crer em nada, que zombam das coisas mais sérias e riem dos santos e dos milagres. Costumava dizer que isso de almas do outro mundo era uma grande mentira, que só os tolos temem o lobisomem e feiticeiras. Jurava ser capaz de dormir uma noite inteira dentro do cemitério, e até de passear às dez horas pela frente da casa do judeu, em sexta-feira maior.

Eu não lhe podia ouvir tais leviandades em coisas medonhas e graves sem que o meu coração se apertasse, e um calafrio me corresse a espinha. Quando a gente se habitua a venerar os decretos da Providência, sob qualquer forma que se manifestem, quando a gente chega à idade avançada em que a lição da experiência demonstra a verdade do que os avós viram e contaram, custa ouvir com paciência os sarcasmos com que os moços tentam ridicularizar as mais respeitáveis tradições, levados por uma vaidade tola, pelo desejo de parecerem espíritos fortes, como dizia o dr. Rebelo. Peço sempre a Deus que me livre de semelhante tentação. Acredito no que vejo e no que me contam pessoas fidedignas, por mais extraordinário que pareça. Sei que o poder do Criador é infinito e arte do inimigo varia. Mas o tenente Sousa pensava de modo contrário!

Apontava à lua com o dedo, deixava-se ficar deitado quando passava um enterro, não se benzia ouvindo o canto da mortalha, dormia sem camisa, ria-se do trovão! Alardeava o ardente desejo de encontrar um curupira, um lobisomem ou uma feiticeira. Ficava impassível vendo cair uma estrela e achava graça ao canto agoureiro do acauã, que tantas desgraças ocasiona. Enfim, ao encontrar um agouro, sorria e passava tranquilamente sem tirar da boca o seu cachimbo de verdadeira espuma do mar.

– Quereis saber uma coisa? Filho meu não frequentaria esses colégios e academias onde só se aprende o desrespeito da religião. Em Belém, parece que todas as crenças velhas vão pela água abaixo. A tal civilização tem acabado com tudo que tínhamos de bom. A mocidade imprudente e Leviana afasta-se dos princípios que os pais lhe incutiram no berço, lisonjeando-se duma falsa ciência que nada explica, e a que, mais acertadamente, se chamaria charlatanismo. Os maus livros, os livros novos, cheios de mentiras, são devorados avidamente. As coisas sagradas, os mistérios são cobertos de motejos, e, em uma palavra, a mocidade hoje, como o tenente Sousa, proclama alto que não crê no diabo (salvo seja, que lá me escapou a palavra!), nem nos agouros, nem nas feiticeiras, nem nos milagres. É de se levantarem as mãos para os céus, pedindo a Deus que não nos confunda com tais ímpios!

O infeliz Antônio de Sousa, transviado por esses propagadores do mal, foi vítima de sua leviandade ainda não há muito tempo.

Tendo por falta de meios abandonado o estudo da medicina, veio Antônio de Sousa para a província em 1871 e conseguiu entrar como oficial do corpo de polícia. No ano seguinte, era promovido ao posto de tenente e nomeado delegado de Óbidos, onde antes nunca tivera vindo.

O seu gênio folgazão, sua urbanidade e delicadeza para com todos, o seu respeito pela lei e pelo direito do cidadão faziam dele uma autoridade como poucas temos tido. Seria um moço estimável a todos os respeitos, se não fora a desgraçada mania de duvidar de tudo, que adquirira nas rodas de estudantes e de gazeteiros do Rio de Janeiro e do Pará.

Desde que lhe descobri esse lastimável defeito, previ que não acabaria bem. Ides ver como se realizaram as minhas previsões.

Em princípio de fevereiro de 1873, por ocasião do assassinato de João Torres, no Paranamiri de cima, Antônio de Sousa para ali partiu, em diligência policial. Realizada a prisão do criminoso, a convite do Ribeiro, que é o maior fazendeiro do Paranamiri, resolveu o tenente delegado Lá passar alguns dias, a fim de conhecer, disse ele, a vida íntima do lavrador da beira do rio.

Não vos descreverei o sítio do tenente Ribeiro, porque ninguém há em Óbidos que o não conheça, principalmente daquela grande demanda que ele venceu contra Miguel Faria, por causa das terras do Uricurizal.

Basta lembrar que todos os cacauais do Paranamiri comunicam entre si por uma vereda mal determinada, e que é fácil percorrer uma grande extensão do caminho, vindo de sítio em sítio até a costa fronteira á cidade.

Antônio de Sousa passava o tempo a visitar os sítios de cacau, conversando com os moradores, a quem ouvia casos extraordinários, ali sucedidos e zombando das crenças do povo. Como lhe falassem muitas vezes da Maria Mucoim, afamada feiticeira daqueles arredores, mostrava grande curiosidade de a conhecer. Um dia em que caçava papagaios, com Ribeiro, contou o desejo que tinha de ver aquela célebre mulher, cujo nome causa o maior terror em todo o distrito.

O Ribeiro olhou para ele, admirado, e depois de uma pausa disse:

– Como? Não conhece Maria Mucoim? Pois olhe, ali a tem.

E apontou para uma velha que, á pequena distância deles, apanhava galhos secos.

O tenente Sousa viu na Maria Mucoim uma velhinha magra, alquebrada, com uns olhos pequenos, de olhar sinistro, as maçãs do rosto muito salientes, a boca negra, que, quando se abria num sorriso horroroso, deixava ver um dente, um só! comprido e escuro. A cara cor de cobre, os cabelos amarelados presos ao alto da cabeça por um trepa-moleque de tartaruga tinham um aspecto medonho que não consigo descrever. A feiticeira trazia ao pescoço um cordão sujo, de onde pendiam numerosos bentinhos, falsos, já se vê, com que procurava enganar ao próximo, para ocultar a sua verdadeira natureza.

Quem não reconhece à primeira vista essas criaturas malditas que fazem pacto com o inimigo e vivem de suas sortes más, permitidas por Deus para castigo dos nossos pecados?

A Maria Mucoim, segundo dizem más línguas (que eu nada afirmo nem quero afirmar, pois só desejo dizer a verdade para o bem-estar da minha alma), fora outrora caseira do defunto padre João, vigário de Óbidos. Depois que o reverendo foi dar contas a Deus do que fizera cá no mundo (e severas deviam ser, segundo se dizia), a tapuia retirou-se para o Paranamiri, onde, em vez de cogitar em purgar os seus grandes pecados, começou a exercer o hediondo ofício que sabeis, naturalmente pela certeza de já estar condenada em vida.

Quem nada pode esperar do céu, pede auxílio às profundas do inferno. E se isto digo, não por leviandade o menciono. Pessoas respeitáveis afirmaram-me ter visto a tapuia transformada em pata, quando é indubitável que Mucoim jamais criou aves dessa espécie.

Mas o Antônio de Sousa é que não acreditava nessas toleimas. Por isso atreveu-se a caçoar da feiticeira:

– Então, tia velha, é certo que você tem pacto com o diabo?

(Lá me escapou a palavra maldita, mas foi para referir o caso tal como se passou. Deus me perdoe.)

A tapuia não respondeu, mas pôs-se a olhar para ele com aqueles olhos sem luz, que intimidam aos mais corajosos pescadores da beira do rio.

O rapaz insistiu, admirando o silêncio da velha.

- É certo que você é feiticeira?

O demônio da mulher continuou calada e levantando um feixe de lenha, pôs-se a caminhar com passos trôpegos.

Sousa impacientou-se:

– Falas ou não falas, mulher do...?

Como moço de agora, o tenente gastava muito o nome do inimigo do gênero humano.