Portada

Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

© 2007 Margaret Moore. Todos os direitos reservados. AS SÚPLICAS DE UMA DAMA, Nº 223 - Março 2011 Título original: Rogue’s Lady Publicada originalmente por HQN™ Books.

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.
Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.
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I.S.B.N.: 978-84-671-9568-2
Editor responsável: Luis Pugni

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Portadilla

Um

Da janela da biblioteca, Allegra Antinori estava a olhar, embevecida, para o jardim despido do final do Inverno e não ouviu os passos que se aproximavam.

– Portanto, era aqui que estavas escondida...

Allegra tremeu ao ouvir aquela voz fina de menina, tão pouco de acordo com o tom venenoso das palavras. Ao virar-se, encontrou-se com os olhos azuis duros da esposa do seu tio Robert.

Enquanto passava pelos ombros o xaile muito caro debruado a contas cor de azeviche, a jovem continuou:

– O pobre Robert estava demasiado doente durante estes últimos meses para tratar da tua vadiagem, mas já está na hora de te pôr a trabalhar em coisas úteis. Deixa de choramingar e vai ajudarHobbs com as travessas de carne e queijo. É preciso levá-las para a sala de jantar. Os membros do cortejo fúnebre estão quase a chegar.

Depois de passar semanas junto do leito do seu tio, enquanto ele deslizava lentamente para a morte, Allegra estava demasiado cansada e triste para resistir à tirania mesquinha daquela mulher.

– Está bem, tia Sapphira.

Aqueles olhos azuis, que enfeitiçavam os homens, cravaram-se nela.

Para ti, é lady Lynton a partir de agora, rapariga. Vi-me obrigada a agradar a Robert e a acolher-te na minha casa depois de os teus pais terem morrido no Outono passado, mas agora terás de respeitar as minhas regras. Não és um verdadeiro membro desta família e não tolerarei que te comportes como tal.

Allegra estava devastada pela perda, em tão curto período de tempo, das três pessoas que mais amava e não pôde deixar de responder àquela afirmação.

– É verdade que o tio Robert não era meu tio, mas era o primo mais querido da minha mãe, por muito que prefiras negá-lo.

– Talvez fosse de nascença, mas toda a gente sabe que a família de lady Grace a repudiou quando se casou com o teu pai. Um músico ambulante! E estrangeiro, além disso! Suponho que a ambição do seu marido a tenha contagiado, porque está claro que conseguiu manter o controlo sobre Robert. Deixar que a família dela ocupasse esta casa cada vez que vinha a Londres! No entanto, ele já não pode interceder por ti. Se desejares ter um tecto, terás de te deixar dessas pretensões ou expulsar-te-ei, vais ver! E agora, ao trabalho!

Allegra sentiu uma fúria tão grande que, por um momento, superou a sua tristeza. Depois, jurou a si mesma que preferia que a mandasse para a rua naquela noite a fazer uma reverência àquela mulher, que não era muito mais velha do que ela, ou a chamar-lhe lady Lynton.

– Vou atender os convidados... tia Sapphira – respondeu, olhando directamente nos olhos da mulher que tinha enganado o seu tio para que se casasse com ela, apenas seis meses depois da morte da amada primeira esposa.

Sapphira devia ter-se dado conta de que não podia pressionar mais Allegra ou talvez não quisesse perder uma criada quando esperava ter a casa cheia de convidados, portanto, foi a primeira a desviar o olhar.

– Tenta fazer tudo o que Hobbs precisar – disse e virou-se para o espelho. – E é melhor que não te veja com essa cara tão sombria na sala quando os convidados chegarem. Nunca entenderei como foi possível que Robert reconhecesse o mínimo parentesco com uma mulher que parece mais uma cigana do que uma rapariga inglesa.

Com aquela frase de despedida, Sapphira compôs os saca-rolhas dourados à volta da perfeição de porcelana da sua loiça e foi-se embora.

Allegra, debilitada por aquele confronto, sentou-se num sofá. Descansaria um pouco e depois iria ajudar Hobbs.

Pela enésima vez, lamentou o fraco do sexo masculino por lábios carnudos e vermelhos, olhos azuis e caracóis loiros numa figura curvilínea. Esperava que, durante o ano que o seu tio tinha sido casado com Sapphira, não tivesse tido tempo para descobrir como o coração dela era desumano e egoísta sob aquelas formas perfeitas. Sentia-se completamente sozinha num mundo que a assustava. Oxalá o filho do seu tio Robert, Rob, tivesse conseguido chegar a casa para ver o pai antes de morrer! Para partilhar com ela a tristeza da perda com o mesmo afecto que sempre demonstrara durante as suas visitas na infância.

No entanto, o seu primo Rob, que ela sempre tinha idolatrado e que ainda idolatrava em segredo, transformara-se no capitão Robert Lynton e tinha estado a servir três anos no exército de Wellington. Depois de sobreviver à batalha de Waterloo, trabalhava actualmente em questões diplomáticas em Paris.

«Certamente, quando receber a notícia da morte do seu pai, Wellington permitir-lhe-á vir a casa», pensou Allegra e animou-se um pouco.

Embora isso não representasse nenhuma diferença quanto ao seu próprio futuro. Por muito que ela amasse o seu tio, o único motivo pelo qual tinha vindo a Londres pedir-lhe ajuda fora a morte repentina dos seus pais num momento em que a família atravessava dificuldades financeiras pouco comuns. Ela nunca tivera outra intenção que não fosse passar uma temporada em Lynton House. No entanto, o seu tio Robert já estava doente quando ela chegara e Allegra tinha tido de adiar os seus planos de se mudar para outro lugar enquanto cuidava dele, já que a nova esposa tinha expressado o horror que sentia pelo quarto do doente. Com um tecto sob o qual se refugiar, ainda que fosse precário, dado o rancor do olhar de Sapphira, e tempo para se preparar, poderia encontrar um modo de vida e assim não ter de depender da caridade de lorde Lynton, nem da piedade de Sapphira.

Allegra tinha nascido numa família orgulhosa. Olhou para a lareira e sorriu. Tinham conhecido tempos difíceis, mas o seu pai tinha um talento musical tão notável, que sempre conseguira evitar a desgraça com o mecenato ou com a encomenda de um bailado, um concerto ou uma sonata. Para o virtuoso músico e a bela esposa, a quem chamava musa de inspiração, o facto de estarem juntos era compensação suficiente por todas as dificuldades. Allegra crescera naquele círculo de amor e nunca tinha pensado em qual seria o seu estatuto no mundo.

A partir daquele momento, no entanto, teria de pensar muito. Sapphira deixara bem claro que, depois de discutir contra cada palavra amável do seu tio e cada prato de comida que lhe proporcionara, pensava transformá-la numa criada sem salário.

No entanto, devia esperar um pouco para pensar em como poderia evitar aquele destino. Naquele momento, serviria o seu tio pela última vez, ajudando Hobbs e o resto dos criados a preparar a comida para os convidados que viriam honrar o falecido lorde Lynton.

Horas depois, Allegra levava várias travessas vazias para a cozinha, quando Hobbs voltou de acompanhar o último convidado até à porta.

– Eu encarrego-me disso agora, menina Allegra – disse-lhe o mordomo, libertando-a apressadamente da sua carga. – Foi muito amável por nos ter ajudado. O resto dos criados e eu queríamos dar-lhe os pêsames. Lorde Lynton era um cavalheiro magnífico.

– Sim, era – disse Allegra, comovida pela deferência que o mordomo continuava a demonstrar-lhe, apesar de os criados já deverem saber que a sua nova senhora estava a tentar relegá-la para um lugar entre eles.

– Esteve a cuidar do seu tio sem parar nestas últimas semanas. Porque não vai descansar agora?

– Obrigada, Hobbs. Acho que vou fazê-lo.

Quando se dirigia para a escada principal, a senhora Bessborough, a governanta, pôs-lhe uma mão sobre o braço, com cara de preocupação.

– Desculpe-me, menina, mas... – a mulher olhou para o mordomo e prosseguiu: – Oh, menina, lamento imenso, mas lady Lynton ordenou-me que tirasse as suas coisas do quarto azul...

Allegra parou e exalou um suspiro. Embora tivessem tido muitos convidados naquele dia, Sapphira não perdera tempo na hora de reforçar a sua mudança de estatuto.

– Está bem, Bessie – disse e deu algumas palmadinhas no ombro da mulher que, como Hobbs, a conhecia desde que tinha entrado na cozinha de Lynton House há vinte anos, quando ainda mal sabia andar, agarrada às saias da sua mãe. – Importas-te de me mostrar o meu novo quarto?

– Sim, menina. Siga-me.

Abanando a cabeça e estalando a língua de desagrado, a governanta guiou Allegra para a escada de serviço.

Tal como Allegra esperava, a governanta só parou quando chegaram aos quartos das águas-furtadas, onde dormiam as criadas.

– Ela disse-me que a instalasse com as criadas, mas decidimos trazer as suas coisas para esta despensa, que é um quarto muito agradável. Era aqui que a falecida lady Lynton guardava os seus baús. Sam ajudou-me a tirá-los e a colocar uma cama para si. Receio que ainda esteja um pouco cheio, mas, pelo menos, aqui terá privacidade.

A bondade daquela mulher fez com que Allegra sentisse as lágrimas a chegarem-lhe aos olhos.

– Tens a certeza, Bessie? Não quero que tenhas problemas com a tia Sapphira por minha causa.

A governanta soprou.

– Ela nunca vai além do seu quarto, portanto, nunca virá até aqui e não saberá. E pensar que o pobre senhor ainda nem está frio na campa! Nunca pensei que veria uma coisa semelhante. O que vai fazer, menina?

Allegra aproximou-se da cama e sentou-se.

– Ainda não sei.

– Toca piano e violino tão bem como o seu falecido pai, que Deus o tenha. Talvez pudesse trabalhar na área da música, como ele.

– Se fosse casada com um músico, poderíamos tocar juntos, mas não creio que possa seguir essa carreira sendo uma mulher solteira.

– E no teatro? Quando era menina, tagarelava sobre os teatros que tinha visitado.

Durante as temporadas em que o seu pai tinha trabalhado como músico de orquestra nos teatros, a família tinha travado amizade com alguns actores e directores de teatros. No entanto, embora Allegra sentisse entusiasmo ao pensar em tornar-se música, dançar e representar não a cativava.

– Não, não creio que tenha talento necessário para me tornar uma Sidons – e acrescentou, rindo-se: – nem vontade de mostrar as pernas em papéis que requerem usar bombachas, como Ves-tris.

– Nem pensar! – exclamou a governanta, horrorizada. – O melhor seria que encontrasse um bom homem e que se casasse com ele. Todos esperávamos que o senhor lhe arranjasse um pretendente adequado. No entanto, quando ficou doente... – a governanta suspirou e deixou a frase a meio.

A senhora Bessborough nunca pusera os pés numa sala de baile de Mayfair, mas sabia muito bem que, depois de a mãe de Allegra ter perdido o prestígio ao fugir para se casar com um músico, seria difícil para a rapariga entrar no mundo aristocrático onde a sua mãe tinha nascido, embora contasse com o apoio de lorde Lynton. Agora, com a oposição de Sapphira Lynton, seria impossível.

– Duvido que o meu tio Robert tivesse conseguido arranjar-me um casamento, mesmo que fosse vivo – disse Allegra.

E ela também não teria vontade de entrar naquele mundo fechado, tão convencido da sua própria importância, que tinha rejeitado a sua mãe por se casar com o homem que amava.

– Suponho que não conheça nenhum homem honrado, jovem, talvez músico?

Allegra recordou naquele momento uma coisa que tinha acontecido oito meses antes, antes de os seus pais adoecerem. A sua mãe chamara-a para lhe contar que um violinista bonito e jovem da orquestra do seu pai tinha pedido permissão à família para apresentar os seus respeitos a Allegra, mas que não lha tinham concedido.

«Não deves pensar que o papá não se preocupa com os teus sentimentos e que rejeitou o senhor Walker sem te consultar», garantira-lhe lady Grace. «Nós pensamos, ao contrário da maioria dos pais, que é de absoluta importância que te cases por amor. Se tivéssemos a mínima suspeita de que sentias afecto pelo senhor Walker, o teu pai ter-lhe-ia dado permissão para te cortejar. No entanto, sabíamos que não era assim e agora, com Napoleão exilado em Santa Helena para sempre, o papá tem outros planos para ti.»

Allegra sentira-se grata ao saber que um músico tinha mostrado interesse por ela, mas dera-se conta de que sentia mais curiosidade pelo seu futuro do que desilusão pelo facto de o seu pai ter rejeitado um pretendente. Pressionara lady Grace a contar-lhe mais, mas a sua mãe, com uma gargalhada e um beijo, dissera-lhe que o seu pai falaria com ela quando chegasse o momento certo.

Allegra sorriu, com tristeza. Fossem quais fossem os planos do seu pai, febres violentas tinham-nos levado antes que chegasse o momento certo. Allegra ficara solteira, sem família e sozinha.

– Receio que não haja nenhum – respondeu, engolindo em seco ao reconhecer aquela triste verdade.

«Qual é o lugar de Allegra Antinori no mundo?», questionou-se. No entanto, o cansaço que sentia fê-la esquecer aquele pensamento e levantou uma mão para conter um bocejo.

– Que vergonha! – exclamou a governanta. – Aqui estou eu, a conversar, quando deveria deixar que se deite e durma durante uma semana. Tenho a certeza de que amanhã as coisas terão melhor aspecto. Agora, deixe-me ajudá-la a tirar o vestido para descansar. Lizzie trar-lhe-á o seu chocolate quente amanhã de manhã.

– Obrigada, Bessie – disse Allegra, com uma gratidão que lhe encheu novamente os olhos de lágrimas.

Mais tarde, quando se deitou, tapou-se com a manta por cima da cabeça e adormeceu imediatamente.

Allegra acordou com a luz pálida do sol, que desenhava um rectângulo ligeiramente quente na colcha da sua cama. Olhou, desorientada, para a janela alta e estreita pela qual entravam os raios de sol, antes de recordar onde estava e porquê.

Ao recordar a morte do tio Robert, sentiu uma grande tristeza e, tremendo de frio, levantou-se rapidamente, vestiu o robe e sentou-se na cama, enrolada na colcha, para pensar no que podia fazer.

Sabia que não queria permanecer em Lynton House. Recusava-se a cumprir as ordens de Sapphira e não queria pôr em perigo os seus amigos da criadagem ao fazer com que escolhessem entre apoiá-la ou obedecer à senhora.

Então, o que queria fazer?

O que mais desejava era um lugar onde instalar-se, um lugar que pudesse considerar seu, não uma sucessão horrível de casas arrendadas com os móveis velhos que a sua mãe, com imaginação e contenção, transformava num lar, para depois ter de recomeçar quando o trabalho do seu pai as levava para outra cidade. A sua mãe era filha de um visconde, sim, mas lady Grace orgulhava-se de como tinha aprendido a embelezar a mais desagradável das casas, a dirigir um punhado de criados quando os tempos eram bons, a cozinhar, a costurar, a limpar e a receber convidados sem ajuda quando os tempos eram mais difíceis. A sua mãe certificara-se de que, para além de aprender Música, Literatura, dança, costura e desportos, adquirisse também as habilidades que eram mais práticas.

Sim, Allegra gostaria de ocupar um lugar onde pudesse utilizar todos os seus talentos e ser útil.

De repente, recordou a visita que a sua mãe e ela tinham feito, anos antes, à preceptora de lady Grace. Depois de passar toda a vida a ensinar os filhos da família do visconde, aquela senhora retirara-se para uma casinha acolhedora no campo, com uma horta e um pomar.

Ah, aquilo sim, seria segurança, possuir uma casa sólida e um terreno próprio, algo que não dependesse dos caprichos da sociedade, que nenhum parente pudesse arrebatar-lhe!

Talvez devesse procurar emprego como preceptora. Preceptora numa casa de campo, com uma grande biblioteca e um bom piano de cauda, onde pudesse passar as noites a tocar ou a ler, depois de ensinar Música, dança, Literatura e Geografia aos seus jovens pupilos. Onde pudesse sentar as meninas no colo, como a sua mãe tinha feito com ela, e ensiná-las a bordar, a remendar ou a ajudar com os bebés que ainda ocupavam os quartos infantis.

Como é claro, uma preceptora podia ser dispensada com tanta rapidez como um parente indesejado e não podia contar com uma pensão e uma casa, nem sequer depois de uma vida de trabalho. Teria de procurar aquele emprego com muito cuidado.

Começaria a fazer uma lista das suas qualificações e depois procuraria imediatamente uma agência de emprego.

Allegra começara a sua lista quando, depois de bater à porta, Lizzie entrou como um redemoinho.

– Oh, menina, que emocionante! – exclamou a criada. – Hobbs disse que acaba de chegar uma carta de França e que o senhor, quer dizer, o novo lorde Lynton, está a caminho de casa!

Rob vinha para casa! Ela sentiu uma pequena pontada de alegria no meio da tristeza que lhe apertava o coração.

– Quando chegará? – perguntou.

– Hobbs não disse, menina, mas os outros criados acham que chegará em breve – respondeu Lizzie e deixou a bandeja na mesa-de-cabeceira. – A senhora Bessborough encarregou-me de lhe dizer que se animasse, porque as coisas vão ser muito diferentes a partir de agora!

Depois de agradecer a Lizzie e de lhe garantir que não tinha de voltar por causa da bandeja, fez-lhe sinal para que saísse.

Rob chegaria em breve. Allegra fechou os olhos e desfrutou daquele pensamento, que era tão reconfortante para ela como o cheiro do chocolate quente. Aquela era a melhor notícia que tinha recebido desde a morte dos seus pais. Allegra bebeu um gole de chocolate, com um sorriso melancólico, enquanto recordava a última vez que tinha estado com Rob Lynton.

Era um rapaz loiro, bonito, cinco anos mais velho do que ela e tão digno como um homem de Oxford. Desanimava-a para que não o seguisse, o que ela fazia sempre quando eram jovens. Dizia-lhe que já estava na altura de arranjar o cabelo, de modular a voz e de se comportar como uma jovem senhora, em vez de se comportar como uma mal-humorada que discutia por tudo com ele. Embora se tivesse recusado a retomar as aulas de esgrima que tinham começado durante a sua anterior estadia, Rob acedera a jogar xadrez com ela, a ganhar-lhe no bilhar e a permitir que cavalgasse com ele pelo parque, de manhã muito cedo, quando ninguém de importância pudesse vê-la atrás dele a galope.

A dor do seu coração aumentou ao recordar aquele momento no parque quando a romântica e, certamente, masculina, adolescente de dezasseis anos que ela era soubera que desejava com todas as suas forças que Rob se desse conta de que era uma jovem senhora e a única que ele queria. Olhando para ele disfarçadamente, com adoração, enquanto cavalgavam, ela tinha-o imaginado a galopar até à casa do seu pai, a descer de um salto do cavalo e a declarar-lhe amor eterno, garantindo-lhe que a vida não teria sentido a menos que ela acedesse a tornar-se esposa dele.

E isso fora... seis anos antes? Embora, naquele momento, Allegra precisasse, mais do que nunca, de um cavaleiro andante que a salvasse, já tinha deixado para trás aquele sonho de juventude. No entanto, agora que sabia que Rob voltava para casa, não conseguia evitar sentir emoção e impaciência.

O jovem Rob que ela recordava devia ter-se tornado um verdadeiro homem, um soldado experiente e forte que tinha sobrevivido a batalhas desesperadas e que depois fora trabalhar para Paris. Certamente, seria um homem decidido e com autoridade, e seria mais do que capaz de arrebatar as rédeas da casa à madrasta.

Quando Sapphira tinha começado a tentar seduzir o seu tio Robert, Bonaparte acabava de fugir da ilha de Elba e Rob tivera de partir rapidamente para a Bélgica para coordenar a reunião de todas as forças de Wellington. Assim, Rob não tinha tido oportunidade de conhecer a jovem noiva do falecido lorde Lynton. O que pensaria da nova madrasta?

Manteria imediatamente as distâncias com ela, com aquela expressão da boca, o cabelo dourado e o busto generoso? Era o que Allegra esperava do fundo do coração. No entanto, embora Rob não fosse velho, nem estivesse ansioso por sentir as carícias de uma esposa amorosa, continuava a ser um homem. Ela não podia ter a certeza de que fosse imune aos encantos de Sapphira, como não tinha sido o pai dele.

«Continuarei com os meus planos de procurar emprego longe daqui», pensou, enquanto acabava o chocolate, afastando da cabeça as lembranças obstinadas do seu velho sonho romântico. Mesmo que ficasse ali para ver Rob a chegar a Londres como lorde Lynton, antes de embarcar na sua nova vida, a possibilidade repugnante de que Sapphira tivesse sucesso a seduzir Rob, como tinha tido a enrolar o pai dele, convenceu-a de que devia ter planos alternativos para o futuro antes que Rob voltasse.

Com um último suspiro ao pensar no belo rosto que recordava com tanta clareza da sua adolescência, Allegra pousou a chávena, pegou na pena e continuou com a sua lista.

Dois

Do outro lado da cidade, alguém bateu à porta do escritório da casa de William Tavener, em Chelsea, e distraiu-o da sua leitura. Ele dirigiu o olhar para a porta enquanto esta se abria e viu a sua prima Lucilla, lady Domcaster, com as mãos nas ancas, a observar aquele espaço pequeno e desarrumado. Com um casaco vermelho elegante, a condizer com o chapéu, Lucilla estava deslocada naquela sala e a expressão de desagrado proclamava-o de forma eloquente.

Disfarçando o seu espanto, e uma rajada de alegria, ao ver a sua prima favorita da infância depois de dois anos, levantou-se da sua poltrona e exclamou:

– Lucilla, querida, que surpresa! Vires até aqui não é muito inteligente, sabias? Vai-te embora imediatamente e jurarei que não te vi.

Com um sopro suave, lady Domcaster entrou no escritório.

– Oh, tolices, Will! E podes poupar esse olhar intimidador para os teus adversários do boxe. Sabes que não vais assustar-me. Deus Santo, que casa tão sombria!

Ao dar-se conta, com uma sensação de alívio tal-vez demasiado grande, de que Lucilla não permitiria que a afugentasse, suspirou afectadamente e fez um gesto lânguido em direcção ao sofá.

– Então, entra. Peço desculpa, se o meu alojamento não está à altura das tuas expectativas. Embora continue a aconselhar-te a reconsiderar esta visita.

– Se tivesses respondido a algum dos meus dois bilhetes – disse Lucilla, enquanto se sentava, – não teria tido de fazer algo tão escandaloso como visitar o meu primo solteiro na sua própria casa.

Will pousou uma mão no peito.

– Meu Deus! A minha fraca reputação. É de esperar que Domcaster me desafie para um duelo?

– Oh, eu sei lidar com o senhor meu marido! – garantiu-lhe Lucilla, com uma faísca no olhar. – Além disso, os rumores dizem que só seduzes senhoras casadas nos seus toucadores ou em ninhos de amor que elas mesmas proporcionam. E agora, já que cometi o acto indecoroso de vir até aqui, poderias oferecer-me alguma coisa para beber, se tiveres algo à mão.

– Dá-me um minuto e vou ver se Barrows pode trazer-nos um pouco de vinho – disse ele. Depois de lhe fazer uma reverência cortês, que ela desdenhou com um sorriso, ele entrou no seu quarto e chamou o seu ajudante de câmara, amigo e homem para tudo.

Barrows recuou tão bruscamente que Will se apercebeu de que tinha estado a ouvir atrás da porta.

– Que acontecimento tão surpreendente! – comentou Barrows em voz baixa. – Trago o vinho ou fico para fazer de acompanhante?

– O vinho – respondeu Will, suavemente. – O melhor, para fazer com que se vá embora depressa.

– Excelente observação... – disse Barrows e foi rapidamente para a porta traseira.

A tarefa deu a Will tempo para conter a alegria que lhe tinha produzido a visita inesperada da sua prima e disfarçá-la com a atitude de tédio que fingia sempre.

– O vinho está quase a chegar – anunciou, enquanto entrava na sala. – Então, a que devo a honra desta inesperada visita?

– Nem sequer leste os bilhetes que te enviei? – perguntou-lhe Lucilla, com exasperação.

Como se ele não tivesse devorado imediatamente o conteúdo da primeira correspondência que tinha recebido de qualquer parente em dois anos! Mas receava que, se a visitasse como lhe pedia nas cartas, não seria suficientemente forte para resistir à tentação de retomar a amizade que tinham partilhado na juventude, uma amizade que no presente não reportaria nenhum benefício a uma dama respeitável da sociedade. Por isso, tinha preferido não ir a North Audley Street.

Embora se sentisse reconfortado pela persistência da sua prima em vê-lo, o melhor para ela seria que rejeitasse qualquer tentativa de renovar aquele vínculo. Para não corrigir a impressão da sua indolência, sorriu preguiçosamente.

– Refresca-me a memória.

– Depois de passar anos enfiada no campo a ter descendência, agora que Maria e Sarah já têm idade suficiente para receberem uma camada de sofisticação da cidade e que Mark está a preparar-se para ir para Oxford, Domcaster acedeu a que passasse uma temporada em Londres, tal como me prometia há muito tempo.

– Os teus amigos devem estar extasiados. Porque vieste ver-me?

Lucilla abanou a cabeça.

– Não tentes convencer-me. Quando entrei, antes de pores a máscara, dei-me conta de que estavas tão contente por me ver como eu a ti. Senti a tua falta, Will!

Antes que ele pudesse adivinhar as suas intenções, ela aproximou-se e deu-lhe um abraço. Novamente espantado, ele permitiu-se, apenas durante um instante, devolver-lho com arrebatamento, antes de a afastar suavemente.

– Lucilla, estás a assustar-me.

– Oh, deixa-te dessa atitude tão irritante e falemos com franqueza! Suponho que penses que o facto de me verem contigo não poderá ser bom para a minha reputação, mas o que te proponho mudará tudo isso. Felizmente, ainda há tempo para que recuperes, antes de te isolares permanentemente da alta sociedade.

Will tinha pensado que ela só queria reatar calmamente a sua amizade, interrompida pela maioria de idade de ambos e pelo casamento de Lucilla. Pela enésima vez, sentiu-se muito surpreendido e disse:

– Isso parece um mau presságio. Tremo só de pensar no que propões.

– Proponho pôr fim à tua carreira de jogador a tempo parcial e de sedutor a tempo inteiro. Embora tenha estado exilada em Hertfortshire a criar os meus filhos, a minha querida amiga Lydia, que continua a viver em Londres, mantém-me bem informada. Domcaster diz que os jovens homens devem libertar-se de vez em quando, mas, na verdade, querido, tu já tens quase trinta anos. Já está na hora de te dedicares a algo mais útil do que jogar às cartas e seduzir as esposas de outros homens.

– Nem todas eram casadas – replicou ele, que estava a divertir-se muito. – Houve muitas viúvas intercaladas com as outras.

– Muito bom para a tua saúde. Ouvi dizer que alguns maridos não tão dóceis de várias das tuas amantes se empenharam num duelo antes do pequeno-almoço.

– Como sempre consegui convencer a parte ofendida de que lutar com espadas é melhor do que com pistolas, não havia muito perigo. Sabes como sou bom na esgrima. Era muito fácil deixar ganhar, a honra ficava reparada e ninguém ficava ferido.

– Meu Deus, Will! – exclamou Lucilla, rindo-se.

– Só tu poderias fazer isso para deixar satisfeitos a mulher e o marido.

Will inclinou a cabeça e tirou um pêlo do ca-saco.

– Alguém deve ter alguma emoção na vida, Lucilla.

– É claro – disse Lucilla. – Embora me pareça que os teus combates no Gentleman Jackson's, sim, Lydia também nos manteve informados da tua carreira de boxe, devessem ser suficientes para cumprir esse desejo! Sempre foste um lutador. Ainda não entendo porque se negou o tio Harold a comprar-te um destino no Exército. Terias estado a dizimar as filas de couraceiros franceses, em vez de conquistar todas as mulheres de moral relaxada de Londres.

Will tinha uma lembrança muito vívida... O seu tio a desdenhar com impaciência o pedido de que lhe comprasse um grau militar, dizendo-lhe que não tinha intenção de gastar dinheiro a enviá-lo para um lugar onde só conseguiria que um soldado polaco lhe atravessasse o corpo. Embora Will tivesse a suspeita de que o seu tio Harold não achava que o Exército tivesse uma necessidade assim tão urgente de soldados, nem sequer a meio de uma guerra, para requerer os serviços do problemático órfão da falecida irmã.

– Alguém deve cuidar das pobres damas que padecem de desamor – disse, depois de um instante.

Algo parecido com pena reflectiu-se durante uma fracção de segundo no rosto de Lucilla.

– Tu bem sabes o que é desamor! Ainda me parece atroz a maneira como a tia Millicent...

Will pôs-lhe um dedo nos lábios antes que pudesse aventurar-se num território que ele não queria explorar.

– Já chega – disse-lhe, com um sorriso, e daquela vez permitiu-se mostrar o seu afecto. – Sempre foste minha defensora, inclusive quando éramos crianças. Embora não saiba o que viste num rapaz sujo que andava sempre à procura de confusões.

– Coragem. Dignidade. Um sentido apurado de jogo limpo – respondeu ela. – Ou talvez – disse rapidamente, com um sorriso, antes que ele pudesse desdenhar os seus louvores com algum comentário engenhoso – fosse porque, ao contrário do filho insuportável do tio Harold, não te achavas com o direito de bater e gozar com uma menina.

– Éramos um belo par! – comentou Will. – Tu, pelo menos, superaste a tua infância selvagem. Agradeço-te muito pela tua lealdade, sabias?

Uma pancada na porta avisou-os do regresso de Barrows, que entrou para servir o vinho, antes de fazer uma reverência silenciosa e partir novamente.

– Não pude fazer nada de útil por ti quando éramos crianças – continuou Lucilla, enquanto bebia um gole do seu vinho. – Mas jurei que, um dia, se tivesse oportunidade, o faria. Agora, sou esposa de um conde, que, casualmente, é parente de duas das matronas do Almack's. Tenho uma posição inquebrável na sociedade e uma temporada completa à minha disposição, e decidi que já está na hora de ocupares a posição para a qual nasceste.

Will estendeu os braços.

– Imagina como seria! O barão sem dinheiro da casa em ruínas.

Ela assentiu, sem fazer caso da amargura do seu tom de voz.

– Exactamente! Ainda és barão, embora o tio tenha descuidado vergonhosamente a propriedade que se deixou a seu cargo. Apesar de tudo, Brookwillow ainda possui uma casa sólida de pedra situada numa linda propriedade. A única coisa de que ambas precisam é de uma boa injecção de dinheiro para as reabilitar. Tu só tens de deixar de perseguir mulheres e começar a procurar uma namorada rica. E eu vou ajudar-te a encontrá-la.

A ideia era tão absurda que Will não conseguiu conter o riso.

– Querida, estás a sonhar! Eu não creio que possa interessar a uma mulher respeitável, a menos que seja louca. E, mesmo que conseguisse enrolar alguma inocente, nenhum pai decente consentiria que eu cortejasse a sua filha.

– Tolices! – respondeu Lucilla, rotundamente. – Falas como se fosses um depravado! Só fizeste o que faz a maioria dos homens jovens: jogar e seduzir mulheres que desejam ser seduzidas, embora com um pouco mais de estilo. De facto, acho que o tio Harold está orgulhoso da tua reputação, embora não o admita. No entanto, como chefe da família, apoiará os teus esforços para te estabeleceres na alta sociedade.

– Ele disse-te isso? – perguntou-lhe Will, que não conseguia acreditar.

– E porque não haveria de te apoiar? Fazê-lo não lhe custa tempo, nem dinheiro – acrescentou ela, ironicamente. – Com a tua educação e o teu apelido, não será difícil conseguires o afecto de uma rapariga inocente. És muito bonito, sabias? E que rapariga consegue resistir ao encanto da reputação de um mulherengo?

Ele ficou a olhar para ela.

– E, dada a minha reputação de mulherengo, o que pensa o teu marido dos teus propósitos para mim?

– Sabes que Marcus sempre gostou de ti, inclusive quando te pegaste com todos os rapazes que falavam de ti nas tuas costas, em Eton. Concorda que deves assumir as responsabilidades que a tua posição implica – respondeu Lucilla e depois, com um risinho, acrescentou: – Além disso, tendo em conta como detesta Londres, entenderá facilmente porque acedeste a substituí-lo como meu acompanhante a todas as festas e bailes a que queira ir.

– Confia assim tanto em mim, apesar da minha reputação?

Lucilla ficou séria.

– Sabe que não me farias mal e eu também sei. Além disso, as meninas e a preceptora estão comigo, portanto, seremos uma família. Bom, o que precisamos é de encontrar uma rapariga bem-educada da nobreza inferior. Apesar do apoio do tio Harold, devido... à limitação dos teus meios económicos, é melhor não aspirar à mão da filha de um duque, nem de um conde. Talvez uma rapariga cuja família deseje que ela tenha um título... Sobretudo, se tiver um avô milionário disposto a deixar-lhe toda a sua fortuna!

Will levantou as mãos e abanou a cabeça.

– Lucilla, querida, agradeço as tuas boas intenções, mas, desculpa, não quero ser sustentado a vida toda.

– Então, o que queres? Já está na hora de te deixares de reviravoltas bruscas, como fizeste desde que saíste de Oxford. Seria assim tão horrível encontrares uma rapariga boa e sensata para amar e que te amasse? Uma rapariga cujo dote te permitisse recuperar a mansão, pôr as terras a produzir e começar a viver como corresponde a lorde Tavener de Brookwillow?

Lucilla fez um gesto que abrangeu a sala.

– Não consegues convencer-me de que lamentarias deixar isto. Pensa nisso! Em vez de viveres numa casa arrendada, onde nem sequer há um piano, poderias tocar na tua própria sala de música em Brookwillow. Podes tornar-te um mecenas das Artes, financiar peças de teatro, musicais. Compor música, como fazias antes. Encher a biblioteca com todos aqueles livros que levavas para casa de Eton e de Oxford – disse ela e riu-se novamente. – Para horror do tio Harold...

Will sorriu.

– A única coisa que era pior para o nosso tio do que ter um sobrinho que compunha música era ter um sobrinho que queria tornar-se estudioso. Uma vez, arranquei-lhe duzentas libras, ameaçando aceitar um lugar de professor numa igreja cristã, se não mas desse.

– E ofereceram-te realmente esse trabalho? – perguntou Lucilla. – Acho que teria sido bom.

– Não, fui inteligente ao não aceitá-lo, embora naquela altura estivesse muito zangado com o tio Harold por não me ter comprado a patente no Exército – e desesperado pelo que poderia proporcionar-lhe o futuro, com uma propriedade em ruínas, sem dinheiro e sem poder usar o seu talento para trabalhar e ganhar a vida. – Não poderia perseguir nenhuma mulher casada e rica.

– Está bem, mas agora já te fartaste disso.

Ele arqueou os sobrolhos.

– A sério?

– Sim. Lydia disse-me que há meses que não te vês envolvido em nenhum escândalo. Ouvi dizer que inclusive rejeitaste as ofertas, bastante descaradas, de lady Marlow.

– Por favor, rogo-te que não repitas isso. Pensa na minha reputação!

– Sem dúvida, foi a tua reputação como amante que a levou a perseguir-te – disse Lucilla e olhou para ele com atrevimento. – Emprega esse talento para deslumbrar a tua donzela rica e ambos serão felizes! O casamento pode ser muito mais do que um acordo horrível baseado na riqueza e na posição social, tal como posso testemunhar com grande satisfação.

Com a esperança de a sobressaltar, lançou-lhe um olhar de lascívia.

– Certamente, tens filhos suficientes para o demonstrar.

– Esse é outro dos benefícios do casamento – replicou ela, absolutamente envergonhada. – Talvez tenhas um filho.

Will tremeu.

– Não me ocorre ninguém mais mal preparado o que eu para ser pai. Os meus pais morreram quando eu era uma criança, o que sei eu disso?

– Sabes muito bem o que não deves fazer. Bom, mudemos de assunto. Assim que a temporada começar, vou dar um jantar para a sobrinha de Lydia, Cecelia, e depois iremos ao baile de lady Ormsby. Nessa noite, poderás fazer a tua primeira aparição na sociedade – disse. Então, olhou para a sua roupa e franziu o sobrolho. – Terás tempo suficiente para ir ao alfaiate e encomendar fatos novos.

– Tenho mesmo de ir a esse baile, não é?

Ela estendeu o braço e agarrou a mão do seu primo.

– Querido Will, perdoa-me! Sei que sou terrivelmente mandona, o que, suponho, advém de dirigir uma casa com um batalhão de criados e três crianças muito activas. Só quero que sejas feliz, que vivas num lugar e com um estilo que estejam à tua altura. Quero que tenhas a oportunidade de encontrar a família que perdeste quando eras criança. Não posso compensar-te pela falta de carreira militar, nem mudar os padrões que proíbem a um cavalheiro seguir a carreira de músico ou de professor erudito, mas posso fazer isto. Não queres, pelo menos, tentar ser respeitável? Se não encontrarmos uma herdeira que seja do teu gosto, poderás sempre voltar para a vida que tens agora. O que tens a perder?

– Vários meses de perseguição de viúvas bem-dispostas? – sugeriu ele. No entanto, Lucilla tinha razão. Estava farto do vazio da sua vida, descontente, inquieto, desejoso de obter algo mais que não sabia definir.

Por outro lado, não tinha a certeza de que ter uma esposa pudesse satisfazer esses desejos.

– Não creio que tenha o carácter adequado para o casamento – objectou. – Vivo sozinho há tanto tempo, que não sei se conseguiria tolerar a convivência contínua com uma mulher.

– Bom, os casais não têm de viver sempre juntos. De facto, por muito que adore Domcaster, com todo o trabalho agrícola da propriedade e os negócios na cidade que ele deve atender, e com todas as minhas responsabilidades com a casa e as crianças, com frequência há dias em que só nos vemos à hora de jantar... ou à noite. Entre todas as jovens que vão aos bailes de solteiros do Almack's, certamente encontrarás alguma agradável e simpática, que esteja disposta a levar esse tipo de vida.

– Talvez – respondeu Will, sem acreditar muito no que a sua prima dizia.

Na verdade, não se iludia, não acreditava que pudesse casar-se por amor, como tinha feito a sua prima. Salvo Lucilla, a única da família que inexplicavelmente tinha acolhido no coração o rapaz rebelde que todos os outros rejeitavam, sabia tanto de carinho familiar como de paternidade.

De facto, as pessoas com quem tinha uma relação mais próxima não eram da sua família, nem da sua classe social. Barrows, o seu ajudante de câmara e companheiro, era um rapaz de rua sujo e necessitado, que ele tinha salvado quando ambos eram crianças. Maud e Andrew Phillips, os caseiros do que restava da sua propriedade em ruínas, eram quem lhe demonstrava o mais parecido com afecto paterno e materno que ele conhecia. Sentiu um arrebatamento de culpa por não ir visitá-los a Brookwillow há meses.

Se pudesse dizer-lhes que tinha conseguido os meios para recuperar a sua propriedade e fazer com que os anos de velhice deles fossem mais fáceis, talvez não sentisse tanta reticência em fazer essa viagem.

Ainda a pensar que era muito improvável que o plano de Lucilla tivesse sucesso, disse:

– Muito bem, envia-me um convite. Pôr-me-ei apresentável e irei.

– Óptimo! – exclamou Lucilla, levantou-se e deu-lhe outro abraço. – Vai jantar lá em casa na semana que vem. Domcaster deseja falar contigo – disse. Enquanto caminhava para a porta, acrescentou: – Pensei que a última viúva com quem te relacionaste cozinhasse melhor. Parece que estás morto de fome. Não precisas de dinheiro para o alfaiate?

– Não – respondeu ele e reparou que corava. Co mo não tivera sorte ao jogo ultimamente, o comentário da sua prima sobre a sua capacidade para comprar comida e roupa não andava muito longe da realidade e isso causava-lhe sobressalto. – Querida, o tempo que passei com Clorinda foi a alimentarmo-nos de prazeres muito mais excitantes dos que os que poderia idealizar qualquer chefe de cozinha.

Ela deu-lhe algumas palmadinhas no braço.

– Se estás a tentar que core, não te incomodes. Domcaster diz que não tenho sensibilidade. Muito bem! Enviar-te-ei o convite.

Ele fez uma reverência.

– Como queira, milady.

– Tolices! – exclamou Lucilla. – Não, não tens de me acompanhar até à carruagem – acrescentou, enquanto ele lhe abria a porta e fazia menção de sair com ela. – A minha criada Berthe está à minha espera – disse e assinalou uma jovem que estava junto da escada, junto de um lacaio. – Até à semanaque vem, então. É bom ver-te outra vez, Will – disse-lhe, com suavidade, antes de se virar e afastar-se.

– É verdade, Lucilla – murmurou ele.

Lentamente, Will entrou na sua casa e sentou-se na sua poltrona. Lorde Tavener de Brookwillow Manor. Poderia transformar-se realmente nesse homem? Restaurar a sua casa, trabalhar as terras, dedicar-se à música, construir uma verdadeira biblioteca de erudito? Encontrar alguém que desejasse partilhar aquela vida?